São Paulo, terça-feira, 2 de maio de 1995
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'Toque de Glauber fazia o quadro vibrar'

INÁCIO ARAÚJO
DA REDAÇÃO

A seguir, Mário Carneiro fala sobre Glauber Rocha e a decadência do cinema brasileiro.
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Folha - Como foi a chegada do Glauber ao Rio?
Carneiro - O Glauber tinha um grande poder de aglutinação, de organização política e muita penetração na imprensa. Era um grande divulgador, dele e do movimento. E ele era genial mesmo.
Quando houve a sessão de ``Deus e o Diabo", sentiu-se isso. Aquele foi um momento muito rico no cinema, porque quem viu ``Vidas Secas" achava impossível aparecer em 64 um filme melhor.
Glauber era esse toque dissonante, essa pincelada que faz o quadro vibrar. O Cinema Novo sem ele talvez não tivesse a penetração no mundo inteiro. Tinha experiência de convívio com o poder e umas intuições impressionantes.
Quando fomos fazer o filme sobre o Sarney, lá no Maranhão, ele disse: ``Olha, o Sarney vai ser presidente da República". Eu disse: ``Tudo bem, Glauber". E aí, quando morreu Tancredo e o Sarney entrou, eu disse: bom, aí está.
Folha - Como era o convívio com ele?
Carneiro - Ele estava sempre escrevendo, produzindo, opinando. Uma vez eu estava fazendo um comercial na praia com Gustavo Dahl e Jabor. Estava de joelhos, olhando de baixo para cima. Aí ouço aquela voz: ``Carneiro, o que você está fazendo aí ajoelhado junto do esgoto? Isso é uma superprodução?" Ele viu que era um comercial de cigarros. Nós ficamos vermelhos de vergonha. E ele ficou indignado! Nunca vi ele falar mal de ninguém.
Folha - Ele não buscava polêmica pessoal?
Carneiro - Não. Houve um momento em que ele resolveu que o Mário Peixoto era de direita e o Humberto Mauro de esquerda. Era uma certeza que ele não podia ter, porque nunca tinha visto ``Limite". Mas, no fim, ele tinha toda a razão. Essa mitologia tinha feito mal -ao Mário Peixoto sobretudo. Depois de ``Limite" ele nunca mais ousou fazer nada.
Folha - Como você vê a queda do Cinema Novo nos anos 70?
Carneiro - Há vários fatores. O primeiro deles foi a ida para fora de vários talentos maiores. O Glauber saiu, o próprio Nelson foi buscar dinheiro lá fora. Perdeu-se muito a confiança no Brasil, e o risco e a ansiedade se tornaram maiores que a vontade de fazer.
Mas também criou-se a noção de que o filme tem de mobilizar capital para o capital retornar. Queriam competir com os americanos. É absurdo.
Folha - Ao mesmo tempo, os projetos ficaram mais caros.
Carneiro - Os projetos de US$ 1 milhão começaram a aumentar. No máximo dava para fazer dois ou três filmes por ano. Houve um esvaziamento cultural em geral. Mas com o cinema foi pior. Deixamos de fazer cem, 120 filmes por ano. Caiu para 20, 30. Depois chegou a zero com o Collor.
Folha - Foi um momento de rejeição ao Brasil em geral.
Carneiro - O ciclo de enjôo do Brasil estava começando. A vontade de ser americano, europeu, o desinteresse pela nossa temática. A Europa também enjoou de nós.
Folha - Há o episódio de tua prisão, em 68, não é?
Carneiro - Acho que foi 67.
Folha - E você ensinou desenho ao Glauber na prisão.
Carneiro - Não sei se ensinei desenho para o Glauber, mas o fato foi o seguinte. Durante 11 dias, ficamos incomunicáveis. Mas o Iberê Camargo foi lá e disse ao carcereiro: ``Olha, tem um amigo aí que é pintor, ele não pode ficar sem seu material de pintura e de desenho, senão vai enlouquecer".
Um dia, chegou o material. Comecei a fazer meus desenhos. E o Glauber acompanhava aquilo com olho aceso. Uma hora, ele disse: ``Ô Mário, como é esse negócio aí de desenho?" Eu disse: ``É que nem cinema, você pega a câmera e sai fazendo." Ele disse: ``Desenha aí um cavalo para eu ver." Aí eu desenhei um cavalo. Aí ele disse: ``Me dá um bloco desses?" Eu dei. ``Você me empresta uns lápis desses?" Eu disse: ``Fica com essa caixa de lápis de cor."
Aí ele se encarapitou na caminha dele, riscando. A certa hora as luzes começaram a se apagar. Quinze minutos depois eles acendiam a luz, deixavam um minuto, apagavam de novo. Era um processo para te deixar atordoado. Enquanto isso eles davam muita porrada nos caras embaixo da gente. Eu já estava meio dormindo. Aí ouvi aquele grito no meio da noite: ``Ultrapassei o figurativo, cheguei ao abstrato!", aquela coisa do Glauber. Todo mundo se levantou para ver os desenhos.
Ele começou a mostrar uma série de Cristos ligados por um cordão umbilical. Parecia que ele estava renascendo, porque ele já estava se sentindo deprimido pela impossibilidade de se expressar de alguma maneira.
Folha - No momento em que vocês trabalharam juntos, na época do ``Di", o Glauber estava na contracorrente?
Carneiro - Na contracorrente total. Nos encontramos na França, quando ele voltou de Veneza. ``A Idade da Terra" (1978-80) não tinha sido bem aceito. Ele sofreu com isso. Você sente que o Glauber ia evoluir para uma forma não-existente de uso da imagem. Mas não houve tempo.
A ``Idade da Terra" tem uma tal liberdade de utilização de atores, de situações. Parece que você está num espaço diferente, num barco que vai andando e vão acontecendo coisas. Acho que daqui a pouco vai ser um filme bem mais compreensível do que é hoje.
(Inácio Araujo)

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