São Paulo, quarta-feira, 3 de maio de 1995
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Os 270 dias do governo FHC

CANDIDO MENDES

É dificílimo encontrar-se foto ou flagrante do presidente FHC amuado ou irritadiço. Faz parte do dote visual trazido pelo tucano à Presidência a carga de simpatia maciça, de sedução permanente, como se em qualquer entrevero o chefe da nação já estivesse um passo adiante, desfeito o equívoco ou o impasse, no volteio do sorriso.
Não se pode medir o êxito do Executivo pela régua dos cem dias, nem contá-lo a partir do momento em que FHC envergou a faixa. O instante original é o de julho, com o sucesso estrondoso do real e a atuação precisa do núcleo da equipe econômica de FHC, incubado ainda na Presidência Itamar.
As galas e as pompas da transmissão formal do cargo só tiveram o toque de dar o seu ao seu dono, de timão assestado e rota sem susto. Os cem dias, neste caso, não valem para avaliar-se o êxito da arrancada, o despegue vertiginoso da primeira intenção de um novo governante e o momento propício da lua-de-mel com o povo, para pedir-lhe os sacrifícios despertados pela esperança de um mandato diferente.
Não há a falar, como tantos presumiram, na viabilidade de um ``New Deal", aproveitando um momento único de benesse histórica, como a que criou, depois dos dias da depressão de 32, a repartida de Roosevelt, no desenho do governo mais próximo de um reformismo social que desfrutaram os Estados Unidos.
Guardamos todos na retina a tranquilidade heráldica com que FHC se despediu de Itamar, senhor de todos os trunfos que lhe asseguraram a vitória presidencial, mas insensível a todo o clima que identificaria o novo passo à frente do Executivo.
O grande êxito continua a ser a façanha gerada ainda no ventre do governo anterior, no prodígio da força da moeda e da confiança popular, no desbarato da inflação, já com nove meses de uma certeza bem-nascida e irretorquível. Acompanha o sucesso único do governo FHC a queda maciça do desemprego -4,5% em fevereiro- e só deparamos a ascensão dos vários índices industriais.
O discurso de posse teve o compasso kennediano, em que a repetição do compromisso com a justiça social deflagrou, de longe, o maior estrépito de aplausos. Com os lances de um governo amadurecido, e nada estremunhado pelas gambiarras, FHC deu ao país, pessoalmente, a imagem de uma liderança latino-americana nas conversações sobre o Mercosul, na intermediação do incidente peruvio-equatoriano, no aliciamento do Chile para o bloco das nações meridionais no continente e, agora, na estratégia de estadista com que o nosso presidente mobiliza Bill Clinton para mudança no Fundo Monetário Internacional.
Sobretudo, demonstramos a agilidade das políticas do Banco Central diante da eventualidade de um efeito ``dominó", a quase fazer baquear a Argentina, na esteira do México.
Tais proezas fizeram esfumar-se, diante da opinião pública, o déficit de caixa do Tesouro, e o comercial, já de US$ 1,385 bilhão, independentemente de qualquer supervalorização cambial da moeda.
À restauração da moeda devia seguir-se a da ordem constitucional modernizadora, apta a responder a economia de mercado consolidada no país, mas o governo, no auge de sua força, não negocia logo os apoios nem explicita por inteiro as suas propostas. Vai à malícia da indefinição, fiel ao dito de Sérgio Motta, de que os partidos são estruturas dialéticas. É à risca do conceito que se fala em flexibilização dos monopólios, permitindo a gregos e troianos defender a sua visão do tamanho do Estado na vida econômica do país.
Não se sabe também, até agora, o real teor da reforma tributária, pedra de toque da marca redistributiva da administração. Doutra parte, o Executivo pode assumir toda impopularidade da reforma da Previdência, afrontando o padrão assistencial-paternalista, construído cuidadosamente desde o varguismo.
De qualquer forma, os neocontras já levam a uma guerra de trincheiras a batalha das emendas, ao lado da aliança corporativo-nacionalista, o enlace entre petroleiros e usineiros na defesa do programa do álcool; a pequena empresa a sustentar seus privilégios na Carta Magna contra os grandes complexos modernizadores; o arco enorme dos defensores do atual estado de coisas na Previdência, do PT ao PPR.
Não sabemos ainda se o Executivo pretende uma plataforma reformista ou entregar-se aos benefícios de uma economia deixada ao dinamismo seco e bruto de suas forças. Não temos ainda uma oposição coesa que possa tomar a iniciativa do questionamento e das posições do governo.
Algumas de suas iniciativas, de qualquer forma, permitem ao governo FHC definir-se, com a mão do gato, mas ainda contraditoriamente. Perfilhou-se o aumento do salário mínimo para R$ 100 e também a manutenção dos privilégios da TR na cobrança da dívida dos ruralistas.
Nos seus 270 dias, o governo se permitiu o luxo de ser dialético, como prega o ministro das Comunicações. Mas soou o gongo para o desafio inédito de conjugar-se estabilidade econômica com legítimo e criativo reformismo social, implicado pela social-democracia.

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