São Paulo, sexta-feira, 5 de maio de 1995
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Darcy usa ufanismo como motor da crítica

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Antropólogo, senador (PDT-RJ), ex-chefe da Casa Civil no governo João Goulart, idealizador da Universidade de Brasília, romancista, utopista, Darcy Ribeiro apresenta assim o seu novo livro: ``Me vi na iminência de morrer sem concluí-lo. Fugi do hospital, aqui para Maricá, para viver e também para escrevê-lo. Se você, hoje, o tem em mãos para ler, em letras de forma, é porque afinal venci, fazendo-o existir. Tomara."
``O Povo Brasileiro. A Formação e o Sentido do Brasil" (Cia. das Letras) deixa transparecer, em suas páginas, o estado de euforia exasperada, de triunfalismo trágico que, por certo, acompanhou sua elaboração. No plano pessoal, surge como uma vitória contra a doença e a morte. No plano intelectual, afirma a confiança que o autor sempre teve nos destinos do país.
Mas é uma confiança que tem também algo de paroxístico, de desesperado. A história do Brasil, aos olhos de Darcy Ribeiro, é capaz de suscitar o máximo de otimismo e o máximo de depressão.
A civilização brasileira é um sucesso doloroso, um fracasso exaltante. E o livro, escrito por alguém que viveu apaixonadamente o nacionalismo de esquerda dos anos 60, para depois conhecer o exílio e a perseguição do regime militar, expressa um grande dilaceramento e a vontade de superá-lo, como se o autor e o objeto que descreve se identificassem numa coisa só.
O título é um tanto pomposo e procura claramente inscrever a obra dentro da tradição dos ensaios clássicos de interpretação da sociedade brasileira, a exemplo de ``Casa Grande e Senzala" (Gilberto Freyre), ``Raízes do Brasil", (Sérgio Buarque de Holanda), ``Formação do Brasil Contemporâneo" (Caio Prado Jr.), para não falar de ``Os Donos do Poder" (Raymundo Faoro) ou das obras de Celso Furtado.
Todos esses livros foram escritos no período que vai dos anos 30 até as vésperas de 1964. Correspondem a um movimento intelectual e político de desalienação da sociedade brasileira. Tratava-se, inicialmente, de ``revelar o verdadeiro Brasil" para as próprias elites brasileiras (o caso de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque) e, em seguida, de dar base para a transformação econômica e social do país.
Período de engajamento e de confiança emancipatória, portanto: industrialização, nacionalismo, aumento das movimentações sociais no campo e na cidade. ``O Povo Brasileiro" surge em circunstâncias bem diversas, que talvez expliquem o que, na forma e no conteúdo, tem de dissonante.
O processo de industrialização, enfatizado depois de 30, não nos levou ao Primeiro Mundo, como se pensava. As perspectivas de independência econômica e de autonomia nacional foram varridas do mapa e agora, quando se celebra como uma vitória a nossa inserção no mercado mundial, estão mais distantes do que nunca.
Mas não é só isso. Dizer que somos uma nação mestiça, celebrar as particularidades de nossa população, afirmar que existe uma ``cultura brasileira" eram algo de inovador e ousado nos anos 30. Essa ``descoberta" do Brasil real foi assumindo, com o tempo, características mais e mais mistificadoras e ideológicas; está nas novelas da Globo, nos discursos de ACM. Hoje, os ricos desfilam nas escolas de samba e acham que o melhor é morar em Miami.
Claro que Darcy Ribeiro sabe disso. Sua estratégia, entretanto, não é a de deslindar essa contradição (ufanismo com Miami, autodesprezo com baianidade), mas antes exagerar ao máximo o pólo de celebração nacionalista e o pólo da crítica social.
A exaltação do país alcança momentos de incrível estridência. Com o culto a Iemanjá, por exemplo, ``aposentamos o velho e ridículo Papai Noel, barbado, comendo frutas européias secas... em seu lugar surge, depois da Grécia, a primeira santa que fode". O Brasil é ``uma nova Roma... cujo papel, doravante, menos que absorver europeidades, será ensinar o mundo a viver mais alegre e mais feliz".
A crítica, por sua vez, é contundente: a sociedade brasileira ``tem incompatibilidades insanáveis. Dentre elas, a incapacidade de assegurar um padrão de vida, mesmo modestamente satisfatório, para a maioria de população nacional, a inaptidão para criar uma cidadania livre e, em consequência, a inviabilidade de instituir-se uma vida democrática". As camadas mais humildes são ``predispostas a assumir atitudes de subserviência, compelidas a se deixarem explorar até a exaustão".
Entre esses dois pólos, não parece haver dialética possível. Culturalmente, o Brasil vai bem; socialmente, vai mal. A tensão entre as duas coisas passa por todo o livro e desconcerta até o estilo e o vocabulário, ora sóbrio e sociológico, ora desabusado, ora ``euclidiano", ora Mário de Andrade, ora à cronista colonial.
Há um Brasil bom, promissor, só que sufocado por uma classe dominante imutável, pelo latifúndio e pela dominação estrangeira. Certo. Mas, para provar sua tese, Darcy Ribeiro tem de dizer, não que nossa cultura está desfigurada, traída, pela dominação, mas sim que já existe, pujante, alegre.
Como nada indica a possibilidade atual de uma derrota do sistema, as únicas razões de otimismo estão em outro plano, o de nossa identidade cultural. Somos automaticamente vitoriosos nesse campo e cronicamente derrotados no outro. Já ganhamos, mas estamos perdidos.
O que permanece um mistério, no Brasil, é porque tanta iniquidade e injustiça continuam a ser toleradas. De que modo se articulam dominação e indisciplina, violência e cordialidade, ou seja lá que nome tenha. Mas articular os nexos entre uma coisa e outra, demonstrar que o lado ``bom" prolonga, determina ou causa o lado ``ruim" e vice-versa, seria desastroso para o ponto de vista adotado no livro, em que a celebração do que já existe funciona como apelo para a mudança, e o ufanismo é o motor da crítica.
É complicado gostar do Brasil. E poucos gostam tanto, com tanta verve, quanto Darcy Ribeiro: escreve com raivas e carinhos de apaixonado.

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