São Paulo, sábado, 6 de maio de 1995
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O Suicídio de Cheyenne Brando

JOSUÉ MACHADO

A filha do ator Marlon Brando se suicidou, ou suicidou-se, e alguns jornais noticiaram que ela ``cometeu suicídio". A Folha anunciou na primeira página que ``Filha do ator Marlon Brando comete suicídio".
Por que ``comete suicídio"?
O título da notícia no interior do jornal diz em português que ``Filha de Marlon Brando se enforca no Taiti". Rude, mas correto, informativo e na língua nossa de todo dia. O tal de ``cometer", quase indissoluvelmente ligado a ``suicídio", é óbvia influência da expressão inglesa ``to commit suicide". A notícia vem das agências em inglês, a moçada poliglota mistura línguas e ataca de ``cometer suicídio".
Ninguém, jamais, quando conta oralmente uma história como essa, é capaz de dizer que ``a Joaninha cometeu suicídio." Diz-se que se matou, suicidou-se, enforcou-se. Só quando pegam da pena para escrever é que as pessoas se tornam graves, eruditas, e escrevem o que não diriam nem a lucenadas. Não que a linguagem oral deva ser padrão da linguagem escrita. Mas o que soa estranho na conversa, mesmo a conversa que obedeça aos princípios do padrão culto, quase certamente soará como sino trincado na linguagem escrita, ainda que coloquial, como diria o velho Conselheiro Acácio.
Fora a tristeza da notícia, portanto, é uma tristeza que se cometam pecadilhos como esse, ainda que no calor do fechamento do jornal. Teria sido cansaço ou obra do computador colonizado culturalmente, como se costuma dizer?

Só pode quem pode
O deputado Roberto Campos escreveu num artigo publicado nesta Folha a palavra ``dessarte". Coelho Neto a usava às vezes nos primeiros anos deste século, mas preferia ``destarte". ``Dessarte" é formado de ``dessa" + ``arte", nem convém dizer. Equivale a ``destarte" (``desta" + ``arte") e significa dessa forma, desse modo, assim; assim sendo, diante disso.
Dessarte, podemos concluir que vale tudo, ou melhor, quase tudo, num texto, menos no noticiário do dia-a-dia ou em revistas de assuntos gerais. Nesses instrumentos de divulgação convém utilizar vocabulário e linguagem mais consentâneos, como ele próprio diria, com a linguagem e o entendimento populares. Mas esse é um princípio que não vale para ele, que tem autoridade para escrever o que quiser, como já a teve para fazer o que queria, homessa!

O sociólogo e a colcheia
Um articulista escreveu a respeito da perda de paciência de nosso presidente-sociólogo que ele tropeçou numa entrevista:
``Não uma, mas duas vezes. Primeiro, ao elevar em uma colcheia o tom de voz. Se não desejava questões embaraçosas, que optasse por um pronunciamento."
Tem razão o articulista, mas elevar o tom de voz em uma colcheia constitui imagem musical um tanto desafinada. Colcheia é o nome de uma das figuras representativas do ritmo das notas musicais, como a semibreve, a mínima a semínima, a semicolcheia, a fusa e a semifusa. Nada tem que ver com o tom da nota, apenas com a duração dela, com o tempo. A colcheia tem uma haste com uma pequena cauda e vale a metade da semínima, uma bolota com uma haste sem rabicó.
Ele teria dito bem que o presidente elevou o tom de voz uma oitava ou uma terça ou uma quarta. Ou meio tom ou um tom. Provavelmente foi o que quis dizer.
Seria o caso talvez de as pessoas utilizarem imagens de assuntos que conheçam. Ou consultarem um dicionário, repositório de noções básicas de coisas da vida, para colorir o texto. Que tal?

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em línguas neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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