São Paulo, domingo, 7 de maio de 1995
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Sentimentalismo e jornalismo na F-1

MARCELO LEITE

O pior desta profissão não é falta de curiosidade. É a arrogância. Não o que leva a negligenciar a procura, mas o que impede de ver, quando se tropeça em algo digno de nota. O aniversário da morte de Ayrton Senna ofereceu um espetáculo jornalístico deprimente, nessa matéria.
A Folha, por exemplo, entregou-se a uma sucessão de reportagens burocráticas em memória do herói Imola-do (trocadilho infame, uma das muitas bobagens que se escreveram sobre o tema). Criou um selo -ilustração retangular inserida no primeiro parágrafo de um texto- choroso, com a inscrição ``Um ano sem Senna", avisando já qual seria o tom da cobertura que daria à efeméride. Nos outros jornais, não foi muito diferente. Mas como sou leitor apenas bissexto de cadernos ou páginas de esportes, não me arrisco a um julgamento abrangente como o da Folha, que tenho por obrigação ler diariamente.
A monotonia da paisagem desértica, pouca informação cercada de bons sentimentos por todos os lados, foi rompida pela reportagem principal da revista ``Veja" que circulou em 30 de abril (3 de maio é a data de ca pa). O carro-chefe da Editora Abril não deixou por menos: ``Exclusivo - O que matou Senna".
Na mesma capa, logo abaixo, duas supostas revelações: ``A coluna da direção quebrou por causa de um remendo malfeito"; ``O carro desgovernado bateu no muro e a barra da suspensão entrou na testa do piloto".
Um pouco por desinformação e muito pela impressão deixada pela reportagem minuciosa, fiz sua apologia na crítica da edição que circulou dia 1º de maio na Redação: ``Enquanto a Folha ainda `lembra' Ayrton Senna, a revista `Veja' mostra que de fato não o esqueceu".
Foi o quanto bastou. No mesmo dia a editoria de Esporte da Folha enviou ao ombudsman o seguinte arrazoado:
``1. O material publicado pela revista brasileira repete reportagens exclusivas da `Autosprint', entre novembro e janeiro. Nessa série, a revista italiana especializada em automobilismo desvenda detalhes do acidente de Senna -antecipa conclusão do inquérito da Justiça italiana e conta, pela primeira vez, que um remendo na barra da direção quebrou e que a testa do piloto foi perfurada.
``2. O material da `Veja' não traz nenhuma novidade em relação ao conteúdo daquela série.
``3. A Folha, como os demais jornais do Brasil e do mundo, repercutiu já entre novembro/janeiro as informações da `Autosprint'.
``4. Desde que a `Autosprint' revelou detalhes da morte de Senna, as investigações sobre o acidente pararam de evoluir. A Williams ratificou as informações da revista italiana. A FIA (órgão máximo do automobilismo) não as negou. A Justiça italiana confirmou-as à Folha em fevereiro.
``O material da `Veja' não passa, portanto, de um `cozido' do que já se falou e se escreveu no mundo da F-1. Simplesmente engana seus leitores ao anunciar exclusividade. (...)"

Cozido e emperiquitado
As cópias de reportagens da ``Autosprint" de 28 de novembro de 1994 e de 23 de janeiro de 1995, enviadas pela editoria em apoio à argumentação, não deixam de fato dúvida de que nada havia de inédito naquelas informações destacadas na capa da ``Veja". Foi o pior serviço que seus editores poderiam prestar ao trabalho do correspondente William Waack, emperiquitá-lo com uma fantasiosa exclusividade.
Daí a falar em ``cozido" (gíria de jornalistas para aproveitamento de informações de outros órgãos de imprensa), no entanto, vai alguma distância. A editoria de Esporte da Folha percorreu-a depressa demais.
Li com vagar as reportagens italianas e a brasileira. Esta não é, com certeza, um ``cozido".
A ``Autosprint" de fato antecipou conclusões centrais do inquérito, como a de que a equipe Williams fez uma remendo para aumentar a coluna de direção do carro de Senna e que precisamente aí ela se rompeu, impedindo o piloto de fazer a curva Tamburello. O texto da ``Veja", no entanto, tem detalhes que não foram mencionados pelos jornalistas italianos.
O repórter brasileiro não partiu do zero, claro. O material da ``Autosprint", quem sabe de outras publicações, provavelmente lhe serviu de guia. Só que ele passou dez dias na Itália, realizando entrevistas com 12 peritos e outros informantes envolvidos na investigação (algo supérfluo, se se tratasse apenas de preparar um ``cozido").
A reportagem afirma ainda que o repórter teve em mãos ``o relatório final das investigações, ainda não divulgado, incluindo fotos e desenhos espalhados em três grandes volumes e numa pasta vermelha". Basta uma leitura superficial de reportagens publicadas pela Folha para ter certeza de que os volumes não passaram pelas mãos de nenhum de seus jornalistas. Ou seja, em nenhum momento o jornal obteve informações de primeira mão, como se diz. Com isso, mostrou-se incompetente para oferecer a seus leitores uma visão tão completa, acabada e conclusiva do acidente com Senna, no aniversário de sua morte.

"Estado" X ``Veja"
Não parou por aí a exemplificação patética do velho dito ``o pior cego é o que não quer ver" (outro lugar-comum que vem à mente é a fábula das uvas verdes). As reticências que deixei no final da resposta da editoria de Esporte correspondem ao seguinte parágrafo (omito a parte mais pessoal, que não vem ao caso): ``O OESP (`O Estado de S.Paulo', principal concorrente da Folha) de hoje faz troça do material da revista brasileira (...)."
Não fosse por esta dica, nem teria notado a suposta ironia do vetusto jornal paulista. Ei-la, prenhe do ressentimento nutrido por profissionais de publicações diárias contra o semanário que, apesar de muitos defeitos, ainda consegue fazê-los comer poeira:
``(...) É exatamente o que o leitor do `Estadão' já sabia desde 1º de dezembro de 1994. Reportagem publicada nas páginas 6, 7 e 10 do caderno de `Esportes' daquele dia e baseada em fotos de peritos italianos e do fotógrafo Angelo Orsi, da revista `Autosprint', chega à mesmíssima conclusão. `Veja' acertou, com exatos -como gosta de registrar a revista- cinco meses de atraso." Pelo que se pode ler nas três páginas mencionadas, o pessoal do ``Estado" também não manejou os três volumes. Como no caso da Folha, o concorrente apegou-se ao erro pueril da revista de apregoar exclusividade. É como se os dois jornais dissessem: OK, ela esteve lá e conferiu ``in loco" as conclusões do inquérito, mas fomos nós que demos as informações primeiro. Graças à ``Autosprint", sempre é bom lembrar (e cujo furo a ``Veja", de resto, faria bem em mencionar).
Para o leitor pensar, fecho com a versão interrogativa de mais um lugar-comum: quem é que andou fazendo cortesia com o chapéu alheio?

Uma semana fora
Começa hoje em Fort Worth (Texas, EUA) a convenção anual da ONO, a Organização dos Ombudsman de Imprensa. Por este motivo o atendimento telefônico do ombudsman da Folha será suspenso ao longo da semana, sendo retomado apenas na segunda-feira seguinte (15 de maio).
Durante minha ausência, os casos mais urgentes serão encaminhados diretamente para a Secretaria de Redação. Cartas e recados telefônicos desse período terão resposta, seguramente, mas só depois do dia 15. Até a volta.

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