São Paulo, domingo, 7 de maio de 1995
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Notas do subterrâneo

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Célia Pedrosa tem o mérito de evitar o que Paulo Francis batizou de ``postura do carregador de mala" nos estudos sobre a obra de Antonio Candido, tentação não pequena.
A clareza meridiana com que o autor de "Formação da Literatura Brasileira trata de temas fundamentais para se entender o Brasil -como o jogo entre o local e o cosmopolita, a ordem e a desordem na vida nacional- convida de fato a uma adesão fascinada, completa.
Mas o discípulo incondicional, totalmente rendido, não faria justiça à obra do mestre, perpassada de lado a outro pelo que Paulo Eduardo Arantes batizou de ``sentimento da dialética" -sensibilidade às contradições, mas empenho em organizá-las.
O caminho escolhido pela professora carioca foi o de recompor as matrizes do pensamento de Antonio Candido, rastreando sua formação intelectual, mas também dedicando-se a uma leitura das metáforas críticas persistentes em seus escritos.
Seu objetivo foi servir-se da análise do discurso para trazer à tona pressupostos não evidentes sob o estilo crítico do ensaísta.
Em autor reflexivo por natureza e didático por opção, Célia Pedrosa saiu em busca de bichos subterrâneos não domados, armadilhas da razão pregadas a um racionalista convicto.
No exame dos anos de juventude, aparecem os momentos mais marcantes de sua trajetória -a proximidade dos modernistas paulistas, o contato com os professores da missão francesa fundadora da USP, o duplo compromisso com a teoria e a militância intelectual desde o grupo da revista "Clima.
Está lá também o encontro precoce de Cândido com a literatura que, cindida entre o texto e a vida, permitiu a articulação das preocupações estéticas e políticas, teóricas e práticas.
Tanto quando definia, no calor da hora, a importância do escritor novo, como quando reconstruía os conflitos essenciais por trás dos momentos decisivos da formação da literatura brasileira, o professor tinha em seu horizonte a compreensão da vida cultural do país.
Método e opção pessoal, a primazia do objeto implicou num apreço maior pelo processo, em detrimento do pontual, pela apreensão da forma orgânica e viva contra a dissecção anatômica. Ela se espelha em procedimentos estilísticos incorporados à maneira de uma segunda natureza pelo ensaísta, bem apanhados no estudo de Célia Pedrosa -como o ritmo de viagem ditado pelas digressões, o gosto pelas paráfrases interpretativas, as citações embaladas pelos torneios do próprio texto.
Mas o que "A Palavra Empenhada parece perder de vista é a peculiaridade que estas características, próprias da forma ensaística, assumem na obra de Candido.
A tecla em que insiste a autora é a resistência do nosso iluminista nos trópicos ao engessamento ideológico do discurso científico, sua não-acomodação aos argumentos da autoridade e da competência e sua capacidade de historicizar a própria reflexão.
O resultado é que, deste retrato, surge um autor mais próximo da crítica de ideologia barthesiana, voltada para todo e qualquer objeto da vida cotidiana, do que o pensador do Brasil e estudioso do fenômeno literário.
Mas isso é básico na construção do respeito de que goza a obra de Candido e não justifica a elisão ou menção passageira de nomes fundamentais na sua trajetória (caso do jovem Lukács).
A insistência no par Foucault-Barthes e na desmistificação do cientificismo, desequilíbrio estrutural, levam Célia Pedrosa a incorrer no risco que mais teme.
"A Palavra Empenhada acaba por diluir seu objeto em uma trama teórica fechada em si mesma, incapaz de mostrar, na forma dos textos de Candido, a história da sua formação.

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