São Paulo, domingo, 7 de maio de 1995
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sob o sol de Satã

MARIO VITOR SANTOS

Em alta nos cinemas, a estética da violência perde prestígio nos novos estudos religiosos
Em dezembro de 1945, um camponês egípcio chamado Muhammad Ali deslocava-se em seu camelo no deserto, nas proximidades de um rochedo íngreme, o Jabal al-Tarif, à margem do alto rio Nilo.
Quando cavava à procura de sabaque -uma camada de solo macia e boa para fertilização-, Ali descobriu um recipiente de barro.
Na expectativa de que contivesse ouro, mas com medo de liberar alguma maldição, ele hesitou. Acabou quebrando o jarro. Dentro, achou 13 livros de papiro, envoltos em couro.
O que restou dos livros, depois que parte deles foi usada pela mãe de Ali para avivar o fogo do jantar, chegou às mãos de contrabandistas e comerciantes de antiguidades.
Vieram depois a ser identificados como verdadeiro tesouro: uma série de escritos deixados à história por seguidores de apóstolos renegados, cujos relatos foram excluídos do cânon logo nos primeiros anos depois da passagem de Cristo.
Os livros conformam uma espécie de evangelho alternativo, cantos, poemas e instruções que estão virando do avesso a visão que os estudiosos têm dos primeiros anos da cristandade.
Ao contrário do que se pensava, aquele foi um período de profunda variedade religiosa no cristianismo. No mês que vem, a americana Elaine Pagels, que ensina religião na Universidade de Princeton, lança mais um livro sobre estes ``Evangelhos Gnósticos".
Nesta nova obra, a autora reafirma sua tese de que os fundadores da Igreja baniram uma ala da cristandade, como parte de sua ofensiva para construir os princípios de uma igreja unida, envolvente e massificada.
Segundo ela, o período decisivo nessa transformação teria ocorrido a partir do ano 313, com a conversão do imperador romano Constantino, quando o cristianismo passou a ser religião dominante.
Diz Pagels que o cristianismo, quando ainda era perseguido por Roma, enfatizava a liberdade -mensagem que exerceu grande atração em todo o império- e mostrava-se aberto à participação das mulheres, inclusive em funções sacerdotais depois vetadas pela ortodoxia católica.
No poder, a Igreja teria dado autenticidade religiosa apenas para aqueles textos evangélicos que enfatizassem punição aos descrentes e reforçassem o papel da hierarquia católica. Tais eram os valores úteis à luta contra judeus, maiores rivais na guarda do rebanho de fiéis.
O próximo livro da professora Pagels chama-se ``A Origem de Satã". Sua tese é de que o destaque dado à figura de Satanás, inexistente no Velho Testamento, favoreceu o discurso anti-semita (no evangelho de São Marcos, judeus foram responsabilizados por condenar Jesus à morte) e outros racismos.
Para ela, há uma demonização da maneira de pensar ocidental, que afeta tanto crentes quanto ateus, caracterizada por uma divisão entre servos de Deus e de Satanás, ``Nós" e ``Eles", em que os que não professavam a fé cristã eram ameaça à unidade tribal, manifestações vivas do diabo. Essa tipologia influenciou crucialmente a cultura, um padrão de enorme poder sobre a psicologia de cada um.
Pagels descreve o Evangelho ``de Felipe" como obra que escapa a esse esquema: ``Em lugar de caracterizar o poder do mal como uma força externa que ameaça e invade os seres humanos de fora, o autor conclama a pessoa a reconhecer o mal dentro e a conscientemente erradicá-lo". É o indivíduo assumindo poder sobre sua divindade e diversidade.
Os céticos poderiam dizer que estamos diante de uma receita acabada do cristianismo politicamente correto. O crítico literário Harold Bloom prefere anunciar que, quase dois mil anos depois, a partir de um vaso perdido no deserto, temos afinal chance de contato com a religião ``pós-cristã".

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