São Paulo, segunda-feira, 8 de maio de 1995
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'Nazista será sempre protótipo do mal', diz biógrafo de Hitler

SILVIA BITTENCOURT
ENVIADA ESPECIAL A FRANKFURT

`Nazista será sempre protótipo do mal', diz biógrafo de Hitler
A mídia e a imprensa da Alemanha exageram tanto na quantidade de reportagens sobre o fim da guerra que a opinião pública se torna indiferente aos seus horrores.
A afirmação é do historiador e jornalista Joachim Fest, 68, ex-editor de um dos mais conceituados jornais alemães, o conservador ``Frankfurter Allgemeine Zeitung", e autor, entre outros livros, da mais importante biografia de Adolf Hitler no país.
``Não acho certo que o tema seja comercializado. Acho até preocupante", disse em entrevista exclusiva à Folha, em sua casa, em Frankfurt.
Lançada em 1973, a obra foi, já naquele ano, best-seller da Feira de Livros de Frankfurt. Hoje, ela se encontra na 12ª edição e traduzida para 15 línguas.

Folha - Quando saiu sua biografia, um jornal escreveu: ``Agora a vida de Hitler foi decifrada". Não há mais fatos relevantes sobre Hitler a serem descobertos?
Joachim Fest - Não. Há detalhes, coisas pequenas que sempre aparecem, mas que não mudam sua imagem. Eu já dizia na época que o problema era levantar as questões relevantes. Talvez o sucesso do livro tenha a ver com isso. Há historiadores que dão muita importância a fatos novos. Mas não adianta. Nós já temos tantos documentos disponíveis.
Folha - Que tipo de detalhes apareceu recentemente?
Fest - Por exemplo, li há pouco tempo sobre como costumavam ser engatados os vagões do trem em que Hitler viajava. Primeiro vinha um vagão vazio, depois um repleto de areia, depois o da segurança, depois um outro vazio, depois um com o comando do trem, depois um vazio, depois o de Hitler etc. Mas sabendo disso ou não, não faz diferença.
Folha - Hitler costuma ser descrito como uma pessoa fria, um fanático com orgulho doentio, incapaz de contato pessoal. Sua pessoa e ideologia são muito ligadas a ressentimento, ódio e agressão. Como uma pessoa com atributos tão negativos conseguiu comover massas?
Fest - Ele era tudo o que você disse, mas tinha muitas outras características também. Entre elas a de ser uma espécie de médium, capaz de sentir o clima entre as pessoas e transformá-lo em palavras.
Folha - O senhor escreveu que, se Hitler tivesse morrido num atentado em 1938, poucos teriam hesitado em considerá-lo um dos maiores estadistas da Alemanha. Houve mesmo realizações que pudessem ser reconhecidas como de um estadista?
Fest - Essa frase minha é muito citada. E é isso mesmo. Ele acabou com o desemprego na Alemanha, restabeleceu a ordem -o país se encontrava num caos-, a paz social, realizou a anexação da Áustria. Naturalmente, ela já havia expulsado os judeus, criado campos de concentração. Muita gente entenderia isso como casos extremos, diria que com o tempo a situação se acalmaria.
Folha - O senhor foi editor do ``Faz", fórum da chamada ``Querela dos Historiadores". A questão era se o Holocausto poderia ser comparado a outros genocídios. Quase dez anos após, essa briga trouxe alguma coisa?
Fest - Não muita. Foi uma discussão política e não histórica. Foi um ataque -como continua hoje- dos historiadores de esquerda em cima daqueles com uma opinião diferente.
Eu continuo com a mesma opinião. Ou seja, é possível e necessário comparar fatos históricos. A história também trabalha com analogias. Juergen Habermas (filósofo de esquerda) dizia que as vítimas do regime stalinista foram apenas vítimas de deportações, que tiveram azar. Mas Stálin também matou gente de forma planejada.
Folha - O senhor vê nos grupos neonazistas e de extrema direita na Alemanha uma continuação do nacional-socialismo?
Fest - Não. É preciso diferenciar. Há políticos que querem dar uma certa continuidade, são xenófobos, têm teorias racistas. Mas formam uma minoria pequena.
É preciso vigiá-los e, se for o caso, agir. Mas há aqui uma histeria generalizada, em grande parte incentivada pela esquerda. Por outro lado há os ``skinheads".
Eles usam uniforme com símbolos nazistas, como se fossem herança do nacional-socialismo. Não são. Eles não têm ideologia, só querem chocar a opinião pública.
Folha - Alguns políticos se opõem à participação da Alemanha em missões de paz na antiga Iugoslávia, porque durante o nazismo os alemães se envolveram numa guerra criminosa naquela região. Os alemães devem ter um papel especial por isso?
Fest - Não. É preciso naturalmente levar algumas coisas em consideração. Mas nesse caso, acho absurdo o argumento. Os alemães participaram na Iugoslávia de uma guerra bárbara e até hoje deve haver ressentimento. Mas agora os alemães estariam do lado certo, daqueles que se engajam pela paz. O argumento vem, mais uma vez, da esquerda. Ela se acha tão moral que é impossível fazer alguma coisa, além de apelar e, em alguns casos, de mandar um cheque.
Folha - Como foi o seu 8 de Maio de 1945?
Fest - Eu era prisioneiro. Estava numa prisão americana na França. No dia 1º, li num painel que Hitler havia se matado. Depois veio a notícia da capitulação. Já estava claro. Com Hitler morto, a capitulação viria logo. A morte de Hitler causou mais sensação.
Folha - O que o senhor acha da discussão sobre o significado do 8 de Maio?
Fest - Idiota. Não dá para resumir uma data histórica em algumas palavras. A frase ``A libertação faz aniversário" é uma besteira, é unilateral. Fatos históricos têm sempre um caráter duplo, triplo, múltiplo. A data tem um pouco de derrota, de libertação, um peso moral enorme, a questão da culpa e muitas outras coisas.
Quando se diz que os alemães foram libertados, parece que todos os alemães sofreram sob o regime nazista, que todos foram da resistência. A expressão ``libertação" exime a responsabilidade da maioria. No fundo, o que se quer é reprimir os crimes cometidos depois pelo outro lado.
Folha - Muitos acham que a discussão obriga os alemães a discutirem o passado...
Fest - Não. Não há um povo que tenha discutido tanto seu passado como os alemães. Há milhares de livros, filmes e séries de TV sobre o tema. Só na semana do 8 de Maio serão exibidos na TV 200 programas sobre o tema. As pessoas não aguentam mais.
Quando vi pela primeira vez uma cena de fuzilamento em massa, não consegui dormir três noites, de tanto horror. Agora, 20 anos depois, vi essa sequência umas 30 vezes. Ela não me toca mais. Os alemães fazem tudo até os extremos. Eles mataram ao extremo, agora se arrependem também ao extremo. O povo não conhece o meio termo.
Folha - Testemunhas do nacional-socialismo ainda vivem para contar suas experiências. Quando elas morrerem, a relação com o passado nacional-socialista se tornará tão distante quanto como qualquer outro tema histórico alemão?
Fest - Não. Ele vai pesar sobre os alemães por um longo tempo. Não só por causa dos alemães, mas porque o mundo inteiro tem interesse nisso. Hitler acabou se fixando como a expressão do mal. Nós vamos um dia também achar muitos documentos na antiga URSS. Mas o mundo não será unânime em considerar o comunismo a expressão do mal.
Ele vem de uma tradição humanística. Pelo menos na teoria, tem uma ideologia de libertação. Isso não existia no nacional-socialismo, que nunca escondeu sua base na repressão, exploração, superioridade de raças etc. O nazista será sempre o protótipo do mal.

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