São Paulo, terça-feira, 9 de maio de 1995
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Paixão

ANDRÉ LARA RESENDE

Há algumas semanas, Roberto Mangabeira deu uma entrevista ao jornal ``O Estado de S.Paulo". Criativo e combativo, suas análises da realidade brasileira são sempre estimulantes.
Confortavelmente instalado numa cátedra na escola de direito de Harvard, Mangabeira fez há alguns anos uma opção política curiosa: depois de tentar sem sucesso ser ouvido no antigo MDB, filiou-se ao PDT de Brizola.
Não conseguiu se eleger deputado, mas continua em busca de inserção prática na vida pública brasileira.
Mangabeira diz que seu trabalho no campo da teoria social, nos últimos dez anos, tem dois grandes temas. O primeiro é a tentativa de reconhecer o caráter contingencial das estruturas institucionais e sociais do mundo contemporâneo.
Em contraste com as grandes teorias sociais do passado, e o marxismo especialmente, que eram historicamente determinísticas, Mangabeira crê que essas estruturas poderiam ter sido -assim como ainda podem ser- diferentes.
O segundo tema é o fim da oposição exclusiva entre o estatismo e o privatismo, entre a economia de mercado e a economia planejada. As formas existentes de organização institucional seriam apenas um fragmento do universo das formas possíveis.
São essencialmente duas vertentes de combate ao ceticismo. Segundo Mangabeira, trata-se de uma atitude espiritual pessoal que contrasta com a da elite política brasileira e, especificamente, com a de Fernando Henrique.
A atitude do presidente seria a de que, adultos, perdidas as ilusões juvenis, só nos resta humanizar a ordem estabelecida. Crítico, Mangabeira afirma que a inteligência madura não é uma inteligência desiludida, mas a que passou pela desilusão da desilusão.
Numa bateria de críticas ao governo Fernando Henrique, Mangabeira diz que não há vida intelectual própria no Brasil. Os tecnocratas que hoje estão no governo se formaram há 15 ou 20 anos nas universidades americanas.
A cabeça de nossas elites seria como uma coleção de fósseis intelectuais do que se pensava alhures, uma geração atrás.
É impossível deixar de perceber que, apesar da foto no escritório em Harvard, Mangabeira fala como quem faz política na oposição e tem um projeto pessoal de poder. Até aí, vamos reconhecer que é legítimo e até elogiável.
Quem conhece seu extraordinário livro ``Passion", em que ele procura demonstrar que é possível, e só é possível, a busca do ideal de aperfeiçoamento pessoal na ação pública, compreende.
A capacidade da ação política turvar a análise de um intelectual brilhante continua, entretanto, uma questão não resolvida. Mangabeira é autor de um clássico em termos de equívoco. Em artigo amargo, publicado logo após o lançamento do Plano Cruzado, garantiu que o programa era de tal forma recessivo e concentrador de renda que não se sustentaria. O pobre Cruzado pode ser acusado de tudo, mas recessivo e concentrador de renda é demais.
Uma certa dose de modéstia e humildade diante dos desafios da realidade às vezes pode ser confundida com desilusão e ceticismo. Mas é imprescindível para escapar à síndrome do sonho utópico do revolucionário-visitante.

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