São Paulo, terça-feira, 9 de maio de 1995
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O projeto Sivam _compramos ou construímos?

ROGÉRIO CÉZAR DE CERQUEIRA LEITE

``Quem esquece a história está condenado a repeti-la." Parece que esse aforismo foi escrito por um destes pedantes lordes ingleses, apesar de não conhecer o Brasil.
Sempre que há a necessidade de um empreendimento de grande porte no país, que dependa de capacidade tecnológica para ser realizado, deparamo-nos com dois roteiros possíveis. Ou fazemos com nossas próprias mãos e cérebros ou, alternativamente, adquirimos equipamentos, projetos, serviços de terceiros etc.
As duas opções têm suas vantagens e desvantagens, e a escolha de uma delas é ditada pelas circunstâncias, caso a caso.
A convicção, embora não compartilhada por muitos, de que o Brasil estaria precisando de energia nuclear em futuro não muito distante levou o país, em primeira instância, a adquirir da Westinghouse o reator Angra 1 e, em segunda, a contratar o colossal pacote denominado ``acordo nuclear Brasil-Alemanha", de um consórcio empresarial alemão.
De acordo com esse contrato, a Alemanha forneceria reatores, uma usina de enriquecimento de urânio e outra de reprocessamento do combustível usado e alguns outros itens.
Angra 1, comprada da Westinghouse, após percorrida mais da metade de sua vida útil, produziu em kilowatts-hora menos que 3% de seus custos globais. Quanto ao acordo Brasil-Alemanha, os dois reatores adquiridos inicialmente, dos oito contratados, viraram sucata. A usina de enriquecimento não funciona e a Alemanha não chegou a desenvolver o reprocessamento. O Brasil adquiriu nessa última transação um punhado de sucata por cerca de US$ 7 bilhões e não aprendeu nada ou muito pouco.
Enquanto isso, um grupo de brasileiros coordenados pela Marinha escolheu o primeiro roteiro. Desenvolveram com sucesso a tecnologia de enriquecimento de urânio por meio de ultracentrífugas, a tecnologia que a Alemanha havia sonegado ao Brasil.
Construiu-se simultaneamente reatores de pequeno porte e vários outros segmentos da tecnologia nuclear foram abordados.
Se o programa não tivesse sido boicotado sistematicamente a partir do início do governo Collor, quando se instalou a política da ``servidão voluntária", o Brasil seria hoje possivelmente autônomo quanto à produção de energia nuclear com reatores de porte médio e quanto à produção do combustível.
E esse último programa custou até hoje pouco mais de US$ 300 milhões, 23 vezes menos que o acordo Brasil-Alemanha.
Se o Brasil precisa de energia, ou tecnologia nuclear, ou não, é outro problema. O que nos interessa com esse exemplo é mostrar que o roteiro aparentemente pragmático da compra do pacote fechado não é adequado para setores tecnologicamente avançados.
Invocamos agora um segundo exemplo. Há pouco mais de dez anos foi decidido que seria colocado à disposição da comunidade tecnocientífica brasileira um Sincrotron para produção de radiação eletromagnética de alta intensidade. Imediatamente se colocou o dilema clássico dos dois roteiros. Compramos ou construímos? Folgamos ou suamos?
A maioria achava impossível construir. Não teríamos competência. Aceleradores muito menos complexos como o Peletron e o Acelerador Linear de São Paulo vieram prontos.
Havia, todavia, o exemplo solitário de um obsessivo general, Argos Moreyra, que semeava pelo Brasil afora, praticamente com as próprias mãos, aceleradores lineares de pequeno porte. Felizmente, prevaleceu, por força de circunstâncias fortuitas, a convicção defendida pelo grupo de Campinas.
Hoje o Sincrotron norte-americano de Baton Rouge iniciou suas operações com duas ``linhas de luz" completas, ambas projetadas e inteiramente construídas no Brasil!
O maior Sincrotron para produção de radiação eletromagnética que serve a comunidade européia comprou, usa e adotou o que eles mesmo apelidaram de ``monocromador brasileiro", inventado e construído aqui no Brasil.
A Alemanha, portentosa organização tecnológica, que já vendeu centenas de milhões de dólares de equipamentos para o Brasil, recorre ao Laboratório Nacional de Luz Sincrotron (LNLS) para construir a parte elétrica do equipamento do anel de armazenamento de elétrons.
A fábrica de imãs desse mesmo LNLS já produz para a indústria nacional e todo o ``retrofiting" da Eletrometal S.A. foi elaborado, inclusive a construção dos equipamentos, pelo LNLS.
O Sincrotron brasileiro custou apenas US$ 40 milhões. O de Taiwan custou US$ 200 milhões e o da Coréia US$ 180 milhões. E sobre muitos aspectos são inferiores ao brasileiro.
O Brasil desenvolveu e implantou sua indústria de fibras óticas na década de 70. Antes que qualquer país europeu. E quantos países do mundo têm uma indústria de optoeletrônica?
As forças que contrariavam tanto o programa da Marinha de projeto e construção autônoma de uma usina de enriquecimento de Urânio como o do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) de um Sincrotron brasileiro tinham como principal argumento a falta de experiência e de capacidade tecnológica no Brasil.
Esses são o argumento e a atitude que consolidam a incompetência. Aliás, deve ter havido um primeiro dia para cada país quando o primeiro Sincrotron e a primeira usina de enriquecimento começaram a ser construídas. Antes desses dias específicos, não havia, em cada caso, nem experiência nem capacidade tecnológica.
Pois bem, vou chocar agora tanto os mais céticos quanto os mais otimistas. O Brasil no campo das ciências exatas e biológicas alcançou o Japão, em relação ao PIB.
A produção científica brasileira de qualidade (exceto ciências humanas) corresponde a 0,5% da produção mundial se avaliado por publicações em periódicos incluídos no ``Science Citation Index" (SCI). O Brasil responde por 1% do Produto Mundial. O Japão contribui com 7,5% das publicações do SCI e é responsável por 14% do Produto Mundial. A proporção entre publicações e o PIB é portanto a mesma para os dois países.
A conclusão é que o Brasil é um país pobre, mas competente para seu nível de desenvolvimento econômico. Esses números colocam o Brasil em nível de competência científica comparável ou superior a países tais como Espanha, Bélgica, Áustria, Suécia, Holanda. E quem diria que esses países seriam incapazes de desenvolver e implantar algo como o Sivam?
E o que poderia ser que tornaria esse projeto inacessível à inteligência nacional? Temos competência no setor de comunicações. Talvez seja difícil ou não valha a pena produzir os ``Klystrons". Compraremos obviamente computadores e componentes convencionais. Mas o resto da eletrônica podemos projetar e construir aqui mesmo.
Uma pequena empresa brasileira, Unisoma, acaba de derrotar a Força Aérea de Israel (não no ar) e dezenas de organizações transacionais, inclusive a gigantesca Belcore, que atuam no setor de controle e sistemas de coleta de dados e tomada de decisões em um concurso em que apresentou os melhores resultados para sistemas. E há nesse campo empresas brasileiras dezenas de vezes maiores.
Existem, no Brasil, pelo menos uma dúzia de empresas capazes de desenvolver uma série de protocolos para sistemas de coleta de dados e tomada de decisões, adequados a um sistema de vigilância desse porte.
É claro que radares embarcados compraríamos na Suécia, como faria a Thompson e a Raytheon. Mas não há nada que essas duas empresas sejam capazes de executar e que uma agregação de esforços nacionais não possa.
Então, quais as vantagens de uma contratação no exterior? Em primeiro lugar, o desfecho seria mais rápido, dizem. Mas não podemos esquecer que esse mesmo raciocínio já custou muito caro ao Brasil. Angra 1, orçada inicialmente em US$ 300 milhões, custou US$ 2,5 bilhões, e até agora realmente não entrou em operação regular; o acordo nuclear ficou soterrado.
A Coalbra, que deveria, por hidrólise ácida, produzir álcool em seis meses com a primeira usina importada então da União Soviética, depois de 15 anos de esforços veio a consumir dois litros de ácido sulfúrico para cada litro de álcool produzido, e aí fechou.
Enquanto isso o nosso Proálcool caboclo exporta tecnologia para todo o mundo. Outro exemplo é o das termoelétricas a carvão importadas, que até hoje estão adormecidas em berço esplêndido.
Em segundo lugar, haveria mais segurança, mais confiabilidade em um contrato com uma empresa do porte de uma Raytheon ou de uma Thompson, dizem eles. Ora, uma Kwu-Siemens ou uma Westinghouse não são menores ou menos confiáveis. E deu no que deu.
A razão é que, nesses casos, segurança, confiabilidade dependem de tecnologia. E como venho dizendo há 20 anos (``Tecnologia e Desenvolvimento Nacional", 1978, 2ª edição, editora Duas Cidades), a eficácia de qualquer processo de transferência de tecnologia depende do receptor, de sua competência tecnológica, e não do fornecedor da tecnologia.
Nesse caso, para que haja confiabilidade, segurança, é preciso que o usuário seja competente. Para que ele se torne competente é absolutamente necessário que ele meta a mão na massa. Não basta ser um fiscal, um observador atento, como se propunha para a simbiótica Esca. Empresa tão competente que está à beira da falência.
Por que não se fez uma concorrência nacional, não para o papel ambíguo que se propõe para a Esca, mas para projetar, desenvolver e construir a rede nos moldes exigidos? Quais as desvantagens? Quais as vantagens?
Uma desvantagem previsível é que certamente ficaria muito menos dispendiosa. E no Brasil, nós já sabemos, quanto mais mastodôntico o projeto mais fácil será obter aprovação.
Uma desvantagem possível seria a natural demora. Muito bem, mas o resultado seria consolidado pela capacitação tecnológica nacional acrescida. E todos sabem que segurança nacional é conhecimento, é capacidade tecnológica. Canhão é circunstância. De que serve para a segurança nacional aumentar a capacidade tecnológica da Raytherm?
Um projeto dessas dimensões tem reflexos de natureza técnica e econômica imensos para o país que o desenvolve. E até mesmo os benefícios indiretos, os ``spin-offs", justificam sua execução. Mas só se for efetuado no Brasil. Se no exterior, lá ficarão todos esses benefícios. Será que esse nosso governo de economistas não desconfia por que Clinton e Mitterrand fizeram tanto esforço?
Pois bem, o procedimento correto se iniciaria com uma concorrência nacional para a construção do sistema completo de vigilância. Se nenhum consórcio organizado para tal fim mostrasse capacidade de execução do programa, então seriam admitidos associações com empresas estrangeiras. Somente assim se asseguraria a transferência de tecnologia para o Brasil.
E, a julgar pelos inúmeros exemplos históricos dos grandes projetos nacionais aqui mencionados, grandes economias poderão ser realizadas.

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