São Paulo, sexta-feira, 12 de maio de 1995
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Elizabeth David ainda dá exemplos de vida

NINA HORTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Elizabeth David morreu, dormindo, em sua casa em Chelsea (Londres), em maio de 92.
Todo mundo que gosta de cozinhar deveria ter um modo de se aproximar do mundo desta mulher, escritora que é a cabeça dos cozinheiros do pós-guerra.
Não sei como se comportam seus livros depois de traduzidos. O inglês dela fluía com palavras tão ajustadas ao assunto, com tanta clareza e objetividade, que acho quase impossível captar sua graça, seu modo de ser.
Pois, então, há três anos, morreu Elizabeth David, e um amigo, sabendo o tanto que eu gostava dela, me mandou um recorte de jornal que descrevia o leilão de suas coisas, concorridíssimo, com velhotas sendo empurradas por jovens que queriam passar a mão na forma de bolo de Mrs. David, diante do olhar apalermado e horrorizado da sobrinha e da irmã. Fiquei triste, confesso. Adoraria ter qualquer coisa dela, mas perdi o bonde.
Meses depois, chega aqui em casa, após uma greve dos correios, com um atraso enorme, um catálogo. Muito bem-feito, vinha de uma antiquária e vendedora de livros da qual nunca havia ouvido falar: Janet Clarke, 3 Woodside Cottages, Freshford, Bath, BA3 6EJ, England.
Ela explicava que o espólio de E.D. fora dividido em 177 lotes e que muito admirador saíra de mãos vazias. Ela, a antiquária, sentia-se feliz por ter comprado alguns lotes, que agora oferecia, desmembrados...
A história demorou e, para encurtá-la, sou hoje a possuidora do item 194, um volume do guia ``Relais & Chateaux" (1980), com notas da escritora de onde ir e o que evitar. Também tenho o item 185, um livro enorme, em fac-símile, de 1605, de uma viagem de um inglês à Europa.
Confesso que estou numa fase de total impossibilidade de ler um livro destes, mas E.D. tinha anotado numa folha todas as alusões à comida, que se encontravam na obra gigantesca. Também é meu o item 160. Forminhas de biscoito, de metal, um pouco enferrujadas.
Garanto que estão pensando que adorei, que sou a mais feliz das colecionadoras. Nada disso! Valeu a expectativa, o medo de que as coisas não chegassem nunca, o prazer de abrir os embrulhos, mas me bateu a maior melancolia com o conteúdo.
Quase uma vergonha de ter nas mãos coisas tão íntimas, que ela jamais quis que fossem minhas. Duas realidades tão distantes, o que pensei que iria ganhar com isso? Que liberdade é essa de folhear as cartas que recebeu, o livro que leu, as formas que usou?
Por que perseguir a autora? Por que não deixá-la em paz? Para que servem as relíquias? As palavras dela não foram suficientes? Será que os vestígios de uma vida podem trazer consigo um pouco da sabedoria, da alegria do que morreu? Muito complicado.
E há pouco tempo atrás, E.D. me deu um exemplo de vida. Eu andava querendo reformar a cozinha e a única solução possível para cozinhar com garbo, era ter uma cozinha modulada, conjugada, paredes jogadas no chão, materiais dos mais modernos. Não foi possível, por motivos que todos adivinham.
Naqueles dias de desejo frustrado chegou nas minhas mãos a cozinha de E.D. mandada pelo amigo Luiz Henrique. Gente! A mulher que dava aulas de bem comer para o mundo todo tinha armários daqueles grandes, provençais, marrons, que jogamos fora nos anos 50 e substituímos por pés palito. Estantes, um fogão de quatro bocas, utensílios lindos, é verdade, num esparramo que só ela deveria entender.
Enfim, quantas coisas maravilhosas ela fez e escreveu naquela total falta de pretensão! Moral da história... Bem a história pode ficar sem moral e até acho que com o tempo vou começar a me afeiçoar às coisas de minha guru, passar a mão, me comover, tentar me desculpar e me entender com ela.

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