São Paulo, domingo, 14 de maio de 1995
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Quem tem medo de Virginia Woolf?

ROBERTO CAMPOS

O povo precisa saber quanto está pagando por esse monstrengo de organização sindical

``Livre-me Deus dos amigos, porque dos inimigos me livrarei eu."
(Napoleão Bonaparte)

Quem está querendo atrapalhar as reformas constitucionais? E por quê?
O perfil dos complicadores das propostas em pauta se distribui por quatro categorias principais: 1) os adversários ideológicos (esquerdas e nacionalistas pretéritos social-nacionalistas, não muito diferentes, aliás, dos nacional-socialistas de outras plagas...); 2) os interesses corporativos ligados às estatais e a outras burocracias privilegiadas; 3) os políticos que desejam manipular cargos e benesses (o que se costuma chamar de fisiologismo); e, 4) os políticos que não querem botar azeitona no pastel do governo. Há, porém, graus e graus que é bom distinguir. As ``esquerdas" não se entendem bem entre si. Numericamente, não passam de uma quinta parte do Congresso. Mas que fazem um barulho dos diabos, isso fazem. As ``verdadeiras" querem reformar a sociedade pela revolução. Todas partilham de um equívoco básico de Marx: a idéia de que o problema da abundância já estava resolvido (pelo capitalismo) e, por conseguinte, só restava distribuir bem, começando por liquidar a propriedade privada dos meios de produção. Isso feito (outra curiosa idéia de Marx), reinaria automaticamente entre os homens o amor fraterno. Com essas esquerdas sérias (aos olhos das quais os social-democratas, e outros tíbios senhores de meias medidas são desprezíveis), não há muito o que fazer. É uma questão de clube de futebol (ou de fé, nos casos mais elegantes). Mas delas resta só um punhadinho. Depois de 50 milhões de vítimas e incontáveis sofrimentos, e tendo visto como velhos idealistas se tornam novos aproveitadores, o povo russo -o mesmo da ``Pátria do Socialismo"- botou todo esse pessoal na rua.
Os nacionalistas pretéritos legítimos são também poucos, coitados, já envelhecendo, mais ou menos como os republicanos históricos, espécimes de paleontologia política. Não há muito o que fazer. Estão presos aos paradigmas do fascismo e do nacional-socialismo (com as preocupações de auto-suficiência para uma guerra tipo 1939-1945) ou às palavras de ordem das Frentes Populares, que Stálin inventara para responder aos avanços nacional-socialistas, e, depois de 46, adaptara à ``Guerra Fria" contra o Ocidente. Como é que se converte um torcedor do Flamengo? É difícil, não é?
Essa gente, por si só, não é adversário de campeonato. Mas existe também a linha dos ``apparatchicks", tipo CUT, que seguem a tática do quanto pior melhor. Sabe que não levam, mas procuram impedir, na marra, que os outros levem. Bastam uns poucos para causar prejuízos enormes, e até matar centenas, como o terrorismo tem mostrado. O governo ainda não cumpriu sua obrigação de estimar os enormes custos das greves ideológicas, fúteis ou selvagens, orquestradas pelo peto-cutismo. O povo precisa saber quanto está pagando por esse mostrengo de organização sindical que é uma sobrevivência do totalitarismo fascista, sem qualquer legitimidade numa sociedade democrática. O governo precisa perder o medo da baderna ``prêt-à-porter" e tomar medidas firmes em defesa da democracia. O caso é diferente, e menos simples, quando começamos a lidar com interesses em vez de ideologia. Os corporativistas ligados às estatais e às burocracias de luxo não querem perder as doçuras do seio de Abraão a que se acolhem. Mas nem tudo é ilegítimo. O Estado foi o grande instrumento que lhes abriu as oportunidades, muitas vezes em glebas pioneiras. Criou-se uma boa reserva de técnicos com experiência, adquirida ao longo de anos. Muita coisa feita pelo Estado foi de grande utilidade. O problema aparece quando o crescimento passa de normal a canceroso, e quando os pioneiros se transformam em ``novas classes", que passam a sugar o Estado, ao invés de serví-lo. Tudo é uma questão de proporção. E, no Brasil, há muito já se ultrapassaram os limites da viabilidade. Mas não é impossível um compromisso racional, preservando o que há de legítimo como direitos adquiridos, e compactando o Estado, sem traumas assustadores. Outro ponto a ter em mente é que os políticos que desejam cargos e benesses não são monstros. São políticos normais. Eles não poderiam escorar-se apenas em idéias. Precisam também atender a interesses concretos dos correligionários e das regiões que representam. É verdade em todo o mundo, e dizer outra coisa seria hipocrisia. Ainda neste caso temos uma questão de proporções. Há interesses legítimos, mas também pode haver sofreguidão de fazer do Estado uma vaca leiteira. Encontrar o meio termo equilibrado é uma questão de habilidade política prática, não de posições teóricas.
Há, por fim, os políticos que não querem botar azeitona no pastel do governo. Todos os políticos, afinal, são até certo ponto rivais, de modo que não se pode esperar que se comportem como macacas de auditório. Lidar com a constelação dos interesses estaduais e locais conflitantes é a mais complicada das tarefas políticas concretas. Diante dessas dificuldades, o governo não tem remédio senão fazer duas coisas. Tem de identificar bem e tornar claros para o público e para os políticos quais os interesses globais que considera em jogo. Um governo como o atual dispõe de uma grande reserva de prestígio, que serve como ``âncora"da opinião pública. Ao mesmo tempo, é preciso evitar qualquer triunfalismo ou impressão de rolo compressor -e isso nem sempre é fácil.
Traçar a fronteira entre os interesses globais que é preciso garantir, e o respeito ao espaço próprio de cada político deve ser o mais difícil dos exercícios. Nunca se poderão evitar alguns choques. E quando estes se revelarem incontornáveis, não haverá outro remédio senão mostrar a mão de ferro dentro da luva de pelica. Quando a gente está sendo forçado a entrar numa briga, é bom que o adversário saiba que o custo vai ser alto e pense duas vezes se não será mais barato um compromisso. Um governo legitimado por uma decisiva expressão das urnas tem, quando defende as propostas sancionadas pelo eleitorado, não só legitimidade, mas enorme força.
A situação atual do país requer, entretanto, mais do que habilidade política. O Estado brasileiro chegou ao ponto da inviabilidade. A economia está a tal ponto estrangulada que o governo se vê obrigado a tentar reduzir o consumo e frear o crescimento. O povo sente a gravidade da situação. Mas como não está esclarecido a respeito, acaba botando a culpa de tudo no ``governo".
O grande risco para o país, no entanto, é o que poderíamos chamar de a insciência da inocência. São os bonzinhos -e a cota de tolos- que querem resolver na simplicidade os ``problemas sociais". Parece bonito falar no ``social". E com essa pressa, os bonzinhos fazem a mesma coisa que as pessoas bem intencionadas que pegam na rua um atropelado, acomodam-no da maneira que parece mais confortável, dão-lhe um copo d'água -e o matam. O Brasil está muito longe de ser um país socialmente decente. Infelizmente, porém, não existe Papai Noel, nem cai maná das alturas. A única verdadeira perspectiva de ``abertura social" depende da implacável eficiência da economia e do Estado, e de uma produtividade sempre crescente. Redistribuir carências, como disse Marx certa vez, é ficar na mesma velha m... Essa mensagem não tem sido repetida ao público com a força necessária. Certos setores do empresariado, dos quais, depois de tantos anos de problemas, se devia esperar alguma lucidez para compreender que os problemas gerais só são gerais porque interessam a cada um individualmente, persistem em fazer lobby de interesses imediatos. Quando Lênin disse que a burguesia iria vender-lhe a corda com que a enforcaria, estaria pensando no Brasil?

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