São Paulo, domingo, 14 de maio de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Um depoimento autobiográfico

UMBERTO ECO

Durante toda minha vida, nunca aceitei ser conselheiro de uma agência publicitária, o que se deve ao tipo de moralidade que recebi de 68

Pio 12, nascido príncipe Pacelli, nunca em sua vida, nem mesmo em sua juventude, tinha estado em uma paróquia. Fora educado para ser papa, mas nunca viu o que era a vida real do povo católico. Não digo que este episódio decidiu minha apostasia, mas é uma epifania da decepção. Era como se descobrisse que o papa não sabia o que era uma cruz ou um rosário.
Assim, no começo dos anos 50, abandonei a organização. Muitos outros a abandonaram naquele momento. Entre eles, o filósofo Gianni Vattimo e o extremista de esquerda Toni Negri, que agora está em Paris porque na Itália foi condenado a 30 anos.
O filósofo e a TV
Logo após minha formatura, na situação italiana, era difícil encontrar um lugar na universidade. Me candidatei a um emprego na Rádio e Televisão Italiana. A TV italiana começara havia apenas dois ou três anos. Fiquei lá de 54 a 58. Depois, fui fazer meu serviço militar e, enfim, comecei minha atividade de universitário.
Não fiz carreira na televisão. Mas vi muitas coisas e conheci muitas pessoas. Num dado momento, consegui me tornar o assistente de um diretor de programas artísticos, que aliás me chamava seu alter-Eco. Era um homem extraordinário, Ferdinando Ballo, que durante o fascismo criara uma pequena editora e publicara Brecht, Joyce etc.
Consegui me tornar seu assistente e amigo. Passava noites em sua casa, com milhares e milhares de livros, as primeiras edições de Paul Éluard, de Tristan Tzara. Um de seus amigos tinha a casa cheia de Paul Klee que comprara por US$ 5 cada, pois Klee era um pintor desconhecido na época. Graças a Ballo, que morreu aos 58 anos, encontrei seus amigos, que se chamavam Igor Stravinsky, Brecht...
Na televisão, no andar bem acima de onde eu trabalhava, também havia alguns jovens músicos, da mesma idade que eu, ou um pouco mais velhos. Eram Luciano Berio, Pierre Boulez, Karl-Heinz Stockhausen, Paolo Modena... Nós nos encontrávamos todo dia no bar da televisão e nos tornamos amigos. O encontro com eles foi muito importante para mim. Minha cópia pessoal do "Curso de Linguística Geral", de Saussure, eu roubei no escritório de Berio.
Na época, eles estudavam Trubetskoy, Saussure, a linguística estrutural, para entender coisas relativas a sons e vozes... Assim, foi Berio quem me introduziu na linguística estrutural. Eu lhe fiz ler Joyce. Foi através de Berio e dos músicos que encontrei pela primeira vez Roland Barthes, em Paris, e, logo depois, Roman Jakobson, em Nova York. Isso também explica como foi se construindo meu livro, "A Obra Aberta, como interação entre um jovem filósofo e jovens músicos.
Se "A Obra Aberta foi um dos primeiros livros de crítica a interrogar a posição e a atividade do leitor, foi porque, justamente, os músicos naquela época concebiam obras que deviam ser manipuladas de alguma forma pelo receptor para serem compreendidas.
Depois, veio o Grupo 63: uma espécie de reunião da jovem geração contra o idealismo de orientação alemã em estética. Tentávamos todos fazer algo novo e nos ajudar contra a geração precedente. Éramos chamados de ``a vanguarda de wagon-lit", porque, à diferença da vanguarda tradicional, não éramos marginais. Todos escrevíamos nos jornais, trabalhávamos nas casas editoriais.
No calor de 68
O outro momento importante foi 68. Eu tinha 36 anos. Já era professor de universidade. Foi um choque ver esta jovem geração contrastando com parte de minhas idéias. A geração anterior à minha fora destruída pela experiência. Minha geração tentou o diálogo. De uma certa forma, acreditava neles, que estivessem trazendo algum novo ideal de pureza.
Minha geração recebeu deles uma espécie de apelo puritano. Ao mesmo tempo, sentia o dever de lhes dizer que certas coisas permaneciam importantes. Assim, mesmo nos momentos mais quentes de 68, com as universidades ocupadas, eu mantinha o diálogo e conseguia continuar ensinando.
Houve momentos complicados. Por exemplo, eu ensinava o que na época se chamava semiologia, teoria da comunicação, e os estudantes se revoltavam: "Tudo isso não passa de um complô capitalista, "Viva a revolução!. Daí eu propunha: "Justamente, quero fazer para vocês uma análise da comunicação no sistema capitalista. E eles aceitavam.
Eu continuava normal. Era uma maneira de pagar tributo a seus problemas. Acrescentava um pouco de Adorno, por exemplo, mas continuava e conseguia que estudantes revolucionários lessem Saussure. Não é que quisesse enganá-los. Sentia que eles estavam trazendo novas idéias, mas ao mesmo tempo sentia que havia coisas que deviam saber, senão estariam perdidos.
Foi um momento importante. Trouxeram novos ideais de pureza e acabaram traindo essas idéias. Depois do colapso de 68, alguns foram para o terrorismo e outros são os novos "tycoons. Para mim, foi a ocasião de refletir sobre a posição do intelectual. Durante toda minha vida, nunca aceitei ser conselheiro de uma agência comercial ou publicitária. E isso talvez se deva ao tipo de moralidade que recebi de 68.
Nunca aceitei a idéia do terrorismo. Durante os anos do terrorismo, escrevi alguns artigos para demonstrar que o terrorismo é política e ideologicamente inconsistente. Mais tarde, quando todos -ou quase- os terroristas estavam presos, muitos deles, como a lei permite, seguiam cursos universitários na prisão. Me aconteceu frequentemente ir examiná-los, com uma comissão de professores.
Assim, anos depois, alguns líderes terroristas (e não dos menos importantes), que se apresentavam a meu exame na prisão, me disseram que tinham se reunido para discutir meus artigos e achavam que eu tinha razão. Me dava prazer a idéia de que terroristas na prisão lessem e discutissem meus artigos e concluíssem que eles estavam errados. Me dava prazer, porque sou um professor.
O gênio de Aladim
Benedetto Croce disse uma vez: "O dever da juventude é o de envelhecer. Sou um homem de vários anos, com dois rebentos já adultos, e ainda gosto de fazer amor. Mas se o gênio de Aladim chegasse e me dissesse: "Deves escolher, podes fazer amor para o resto de tua vida com as mulheres mais bonitas do mundo, mas não podes ter mais filhos, ou então: "Podes ter ainda um filho, mas estás condenado a fazer amor só mais uma vez em tua vida, provavelmente, mesmo com minha idade, mesmo já com dois filhos, escolheria a opção dos filhos. E, para o resto, masturbação.
Me lembro que, depois da formatura com meu amigo Furio Colombo, em Milão, com 22 anos, dizíamos: "Terminamos a universidade, começamos novos empregos, mas, o que queremos verdadeiramente fazer com nossas vidas? E me lembro que respondi: "Quero fazer um livro e uma criança, porque são os únicos modos de ultrapassar a morte, uma coisa de papel e uma de carne. Fazer amor, com todos seus prazeres, é estúpido, não leva a nada. Mas minha morte pode ter um sentido se alguém sobreviver a mim e continuar. E escrevo um livro não para ter sucesso agora, mas com a esperança de que, no próximo milênio, ele estará ainda em alguma bibliografia.

Texto Anterior: Um depoimento autobiográfico
Próximo Texto: A estante 'ecomênica' dos saberes modernos
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.