São Paulo, segunda-feira, 15 de maio de 1995
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Centenário causa febre das listas

Enquete escapa do eurocentrismo

AMIR LABAKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A febre das listas parece ser a maior marca das celebrações do centenário do cinema. A Folha contribuiu com a sua na última semana, com o caderno ``Os 10 Melhores Filmes". Um projeto ambicioso: solicitar de cem críticos do mundo inteiro uma lista pessoal com ``as dez maiores realizações da história".
O resultado, além da edição brasileira, sai nesta semana num caderno em francês a ser distribuído em Cannes e no segundo semestre em inglês durante o Festival de Nova York.
Há um quê de multiculturalismo, de politicamente correto, de ONU do cinema, no projeto. Lado a lado, estão o editor do ``Cahiers du Cinéma" e o crítico do ``Novo Jornal" de Cabo Verde, o decano Donald Ritchie (o maior especialista em Kurosawa) do ``Japan Times" e a crítica uruguaia Rosalba Oxadabarat da revista ``Brecha".
Certamente seria outro o resultado da pesquisa caso o critério básico de escolha de votantes privilegiasse a reunião dos críticos e teóricos de cinema de maior renome e influência (alguns dos quais, justiça seja feita, presentes na enquete, ainda que ao lado de, por exemplo, sete membros da redação da revista francesa ``Telérama", não exatamente uma bíblia do ramo).
Por sua vez, teria sido menos confuso para o leitor e mais preciso para com os colaboradores a organização das listas segundo um critério único -preferencial ou cronológica-, evitando a desnorteante mistura de ambos que se deu.
Não se pode negar, contudo, que o universo das listas resultante representa certa massa crítica atual. Entre os mais votados, filme a filme (``Cidadão Kane", ``A Regra do Jogo", ``O Encouraçado Potemkin", ``Oito e Meio", ``Rashomon", ``Aurora", ``Viagem a Tóquio", ``Um Corpo Que Cai", ``Amarcord" e ``Apocalypse Now", por ordem decrescente de número de votos), não há maiores surpresas.
Chama a atenção, claro, que Fellini tenha emplacado dois títulos numa disputa tão renhida, mas um fator conjuntural (sua morte recente) por certo tem a ver com isso.
A ausência de comédias da relação dos dez, notada por Sílvio de Abreu, deve-se sim a certo menosprezo ao gênero, mas cumpre notar que os filmes de Chaplin foram muito citados, ainda que individualmente não tenham concentrado votos suficientes (fosse a lista de uma dúzia, ``Tempos Modernos" lá estaria).
A mesma dispersão vitimou John Ford, que teve oito filmes lembrados, um deles, ``Rastros de Ódio", alcançando o décimo-primeiro posto.
A lista de escolhidos reafirmou o declinante encanto da era muda sobre a sensibilidade contemporânea. O conservadorismo narrativo também marca presença, com o virtual esquecimento das vanguardas (mesmo Buñuel parece pouco lembrado) e até das experiências mais próximas das ``novas ondas" dos anos 60 (Godard ainda se faz representar por vários títulos, mas Resnais foi sensivelmente subestimado).
A nostalgia como sempre impera: menos de 7% dos títulos citados datam dos anos 80 e 90; entre os dez, o mais recente (``Apocalypse Now") já conta bem década e meia.
Menos que a uma pretensa decadência do cinema como arte, isso parece resultar de uma espécie de reflexo ``estetizante": o filme que assisti com refrigerante e pipoca no cinema, ou numa sessão privada de vídeo num final de noite, aquele cujo lançamento há pouco testemunhei ou de cujo debate ontem, no calor da hora, participei, este não parece merecer o status de candidato ao Olimpo do Grande Cinema.
Para tal, como que se exige algum tipo de elaboração crítica posterior à sua aparição; o filme só se tornaria ``arte" após alguma acumulação de trabalho crítico, se possível acompanhado de estima social (não ``culto"; o filme ``cult", imediatamente aclamado, é assim uma espécie de antítese do filme ``de arte").
Ao fim de tudo, esta quase previsibilidade dos filmes eleitos pelo heterodoxo e policêntrico grupo consultado pela Folha parece confirmar a existência se não de um canône cinematográfico internacionalizado, ao menos de uma cinemateca de referência ideal.
O cinema talvez não tenha cumprido a utopia eisensteiniana da obra de arte total, porém firma-se cada vez mais como uma espécie de esperanto audiovisual. Em apenas cem anos, não é nada mal.

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