São Paulo, terça-feira, 16 de maio de 1995
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Renascentismo inspira irmãos Taviani

HUMBERTO SACOMANDI
DO ENVIADO ESPECIAL A ROMA

``Nós somos os filhos dos filhos de Leonardo da Vinci e Michelangelo. E vocês, são filhos de quem?". Essa frase, do filme ``Bom Dia Babilônia", define bem a intenção renascentista do cinema dos irmãos Paolo, 63, e Vittorio Taviani, 65.
Herdeiros do movimento neo-realista italiano, os Taviani resgataram em sua obra patrimônios culturais distintos, da Itália e de outros países europeus.
Essa catedral cinematográfica é construída tendo ao fundo os campos da Toscana ou de outras regiões do interior da Itália. Como em uma pintura renascentista.
Nesta entrevista à Folha, Paolo e Vittorio falam de seus filmes e de sua carreira. E reafirmam a crença no poder de conhecimento através do cinema, que levou os dois à profissão. ``O cinema é a arte por excelência do século 20".
*
Folha - Como vocês definiriam o cinema dos Taviani?
Taviani - É difícil precisar, pois esperamos estar sempre ``in progress". Há um estrada mestre, mas que depois leva a novos e diferentes lugares. Aliás, acho que nossos filmes são um romance com tantos capítulos.
Mas diria que nosso cinema parte de um grande fluxo de realidade, de dados concretos, da história coletiva e existencial. Logo, porém, ganha novos espaços, onde essa realidade é confrontada com a imaginação, a mais livre possível. Esse contínuo alternar entre dado real e explosão fantástica marca o nosso cinema.
Folha - Há uma estética dos irmãos Taviani?
Taviani - Não. Nunca procedemos através de uma teoria. Um filme nasce de um pequeno átomo, que pouco a pouco nos captura. De uma história, um fragmento, algo que se possa contar.
Mas a crítica individuou períodos no nosso cinema. Há o período próximo do neo-realismo, que exprime a necessidade de superação dos limites então angustiantes advindos da relação direta com a realidade. Uma realidade que não era mais tão clara como no pós-guerra, quando o bem e o mal se confrontavam, mas que tinha se tornado complexa.
Em seguida, confrontamos o grande patrimônio deixado pelos mestres do neo-realismo com outros patrimônios que nos chegaram, como a música do século 19, Verdi, o melodrama, que é uma grande força cultural e artística do nosso país. Ou ainda fazer o neo-realismo se deparar com grandes histórias, como as de Tolstoi.
Depois, com o advento da TV, a Itália ganhou finalmente uma unidade, da Lombardia à Sicília. improvisadamente, o imaginário estava se tornando mais coletivo. Os filmes começaram a ser vistos por milhões de pessoas. Percebemos que essa relação com público trazia uma necessidade maior de fabulação. Como na época de nossos pais, quando à noite se sentavam todos junto à fogueira e contavam histórias, provavelmente as mesmas, mas que se renovavam.
Achamos que a tela deveria ser aquela fogueira, em torno à qual nós contaríamos aos outros histórias que nos pertencem. Esse é um outro período individuado. Hoje não sei como estamos.
Folha - Por que fazer cinema?
Taviani - Queríamos fazer cinema desde quando estávamos nas carteiras da escola. O cinema foi uma descoberta violenta. Saindo da guerra, vimos ``Paisá", de Rosselini. Vimos a guerra, como a tínhamos vivido, e compreendemos muito mais sobre ela com esse filme. Isso nos impressionou muito. Se o cinema tinha esse poder, queríamos fazer cinema.
Abrimos assim essa porta e entramos nessa praça maravilhosa, onde de uma parte estão as grandes estruturas de Eisenstein, de outra as grandes construções de Welles e John Ford. Descobrimos um mundo que amamos e continuamos amando, talvez mais agora do do que quando começamos.
Folha - Que poder é esse que vocês viram no cinema?
Taviani - Estamos convencidos de que o meio de expressão por excelência deste século é o cinema. O que melhor exprimiu a alma do século 20, as suas contradições, os seus mistérios. A arte e o cinema nascem do grande fluxo da história. Assim, nos pareceu que o cinema dava mais oportunidades para recolher a grande experiência do nosso século.
Folha - Quem e o que influenciou o cinema de vocês?
Taviani - Já citei Rosselini. Claro que o neo-realismo foi a raiz da qual nasceu essa árvore que é cinema italiano. Todos viemos dessa raiz, mas fomos por estradas diferentes, nos afastando do neo-realismo. Sentíamos uma necessidade de destruir esse pai que nos tinha levado a amar o cinema. Tínhamos que enterrar o pai para poder amá-lo novamente.
Tudo o que veio dos nossos mestres permaneceu dentro de nós, mas acreditamos que conseguimos metabolizar isso. Mesmo porque não há só o cinema na nossa formação. Há a grande literatura, Tolstoi, Dostoiévski. Sobretudo a Rússia, da qual nós sentimos muito próximos.
Há a música, mas teríamos de fazer muitas citações. Há Brecht, o Brecht de cabaré, com o sentido do espetáculo, uma visão do mundo que se aproxima da nossa.
Goethe é outro autor que amamos muito. Mas é difícil dizer quais são os amores nessa vida. Tudo está ``in progress". São as estações da vida.
Às vezes deixamos de gostar de certos autores, pois não precisamos mais dele. Depois o reencontramos, numa outra fase.
Folha - De qual de seus filmes os srs. gostam mais?
Taviani - O próximo, é a piada mais óbvia. Mas, colocando-nos como espectador, são ``A Noite de São Lourenço", ``San Michele" e ``Pai Patrão". São aqueles que, revendo-os, não nos fazem sofrer.
Folha - Qual não é apreciado?
Taviani - Isso é fácil, e já dissemos. É o segundo que fizemos, ``I Fuorilegge del Matrimonio". É um filme menor.
Folha - Uma personalidade do cinema que os impressionou?
Taviani - Cesare Zavattini, um dos principais intelectuais italianos deste século. É um mito para nós. É ligado a filmes que amamos, como ``Ladrões de Bicicleta". Os filmes de De Sica são na verdade de De Sica e Zavattini.
Quando pensamos em fazer nosso primeiro documentário, queríamos saber o que ele achava. Viemos de Pisa para Roma e fomos até a casa dele. Ele nos atendeu. Dissemos que queríamos fazer cinema.
Ele respondeu que poderíamos pelo menos ter telefonado, mas nos fez entrar, com generosidade e genialidade.
Ele nos deixou falar. Contamos a história do documentário, ``San Miniato, 1944", que falava sobre a explosão na catedral da nossa cidade, que depois mostramos em ``A Noite de São Lourenço".
Ao final, ele disse: ``De tudo que me disseram, penso que se pode extrair menos da metade. Por ora, vocês devem recontar tudo em quatro ou cinco palavras. E basta. Se conseguirem, talvez tenha sentido fazer esse trabalho".
A primeira coisa que ele nos ensinou foi a arte de retirar, não a de acrescentar.
Era o contrário do que pensávamos. Quando jovens, temos uma bagagem, um patrimônio, e queremos colocar tudo no filme.
Ele, não. Escolham, dizia. É uma lição que ficou gravada, que vale para a vida, não só para o cinema.
Folha - Como vocês conseguem trabalhar em dois?
Taviani - É uma loucura que nós mesmos não conseguimos entender. Não sabemos responder. É um acaso, que nós no máximo controlamos. Podemos dizer que o cinema é a grande arte da colaboração, mas nós não dividimos as tarefas. Há uma simbiose. A essa altura se tornou quase um forma telepática. Enquanto o resultado corresponder ao que somos capazes de dar, podemos continuar.
Folha - Nunca tiveram a curiosidade de trabalhar sozinhos?
Taviani - Sim, a vontade de experimentar, de ver como seria. Talvez na próxima vida. Como dizia Zavattini, é preciso escolher, infelizmente. E quando se escolhe, ganha-se por um lado, mas perde-se pelo outro.
Folha - Na prática, vocês dividem o trabalho?
Taviani - Sim, normalmente um faz uma tomada, outro faz a seguinte. Mas são tomadas já previamente discutidas, imaginadas. Agora com o vídeo, um dirige e o outro controla no vídeo. Não costumamos fazer muitas tomadas. Se não gostamos de uma tomada, nos entendemos só por olhares. O bom é que temos as mesmas opiniões.
Folha - Por que essa paixão pela terra, a rejeição do urbano?
Paolo Taviani - Não é verdade. Já fizemos filmes urbanos, como ``Sovversivi" e ...
Vittorio Taviani - Bom, mas foi só esse...
Paolo Taviani - É verdade, é verdade. Bom, o fato é que nós nascemos na Toscana. Isso influenciou a nossa formação. E gostamos da relação, às vezes complementar, às vezes conflituosa, entre história e natureza. A paisagem do campo, da Toscana, da Sicília, provavelmente nos dá essa possibilidade.
Folha - Vocês se consideram os mais italianos dos diretores italianos?
Taviani - Bom, é um prazer ouvir isso. Pode ser. Nós sempre pensamos que quanto mais ligados à nossa terra, mais somos internacionais. Mas isso acontece por instinto. Claro que há diretores que fazem grandes filmes em outros países, como Fritz Lang, ou até Bertolucci, que consegue sair da Itália para narrar grandes histórias em várias partes do mundo. Nós sabemos falar do que mais conhecemos, ou seja, a Itália, em especial o interior da Itália.
Folha - O cinema envelheceu bem nesses cem anos?
Taviani - Acho que o advérbio junto ao verbo envelhecer tem pouca importância. O importante é que envelhece, que se transforma.
Folha - Qual o novo desafio do cinema?
Taviani - Hoje não existem mais movimentos. Tudo procede em iniciativas individuais, sem escolas ou grandes tendências.
Achamos que a tecnologia é fundamental para o superamento dos limites e dos impulsos da fantasia, mas, quando vira fim em si mesma, há o perigo de que se torne uma mecanização repetitiva. Assim, me parece que hoje o que se discute mais é o futuro tecnológico, a realidade virtual, o cinema e essas possibilidades estranhas. Acho que é preciso ver esse futuro tecnológico com muito interesse, mas também com muita atenção. É excessiva a importância que se dá à tecnologia. Quando passamos do mudo ao sonoro, do preto e branco à cor, parecia que tudo ia mudar, mas não se mudou tanto assim. O importante é ter coisas para contar usando esses novos meios.

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