São Paulo, terça-feira, 16 de maio de 1995
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Scola diz que o cinema teve boa infância

HUMBERTO SACCOMANDI
DO ENVIADO ESPECIAL A ROMA

Ettore Scola, 64, é o cineasta italiano mais ativo politicamente. Foi militante por 30 anos do extinto Partido Comunista Italiano (hoje PDS). Chegou a ser ministro da cultura num governo ``sombra".
É um dos principais teóricos do cinema italiano e tem a filmografia mais eclética de seu país.
Dirigiu comédias (``Feios, Sujos e Malvados", romances existenciais (``Nós Que Nos Amávamos Tanto"), filmes históricos (``Casanova e a Revolução"), musicais (``O Baile") e fábulas (``A Viagem do Capitão Tornado").
Em entrevista à Folha, Scola diz que seus temas básicos são o tempo, a história e os sentimentos. E afirma que procura, no tempo presente, ``tanto as raízes do futuro como os frutos do passado".
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Folha - Como o sr. definiria o seu cinema?
Ettore Scola - Certamente italiano. Não parto com a intenção de agradar a todos, de fazer filmes universais. Não procuro histórias e atores de outros países, ambientações que não sejam reconhecidas. Sei falar sobre o que conheço.
Meu cinema é calcado num contexto, numa determinada época e costume italianos. Acho que a única maneira de fazer um filme universal é contar com sinceridade o que se é, o que se conhece.
Temos exemplos disso. Um filme italiano que fez sucesso nos EUA foi ``Divórcio à Italiana" (de Pietro Germi), que fala de uma realidade não só italiana, mas da Sicília de uma certa época, com uma mentalidade restrita, na qual o único modo de se livrar de uma mulher era matando-a. Fez sucesso, porque fala de uma realidade italiana que as pessoas querem conhecer, querem descobrir.
Isso me diria um diretor italiano, certamente herdeiro do neo-realismo, especialmente o neo-realismo de Vittorio De Sica, de ``Milagre em Milão", o realismo mágico. Há a vontade de retratar uma realidade, mas também de descobrir o que há de mágico nessa realidade que nos circunda. Vivemos certamente num mundo mágico que deve ser conhecido e descoberto. É o neo-realismo, mas o mistério do neo-realismo.
Folha - Há a estética de Scola?
Scola - Não sei se criei uma estética. Os meus filmes se parecem muito uns com os outros. Às vezes parece até o mesmo filme. Mesmo porque os temas que me interessam são dois ou três.
Folha - Quais são eles?
Scola - São o tempo, a história e os sentimentos. O fluir do tempo, a contemporaneidade em torno do passado e do presente. Creio na conservação de certas coisas do passado, uma conservação progressista. Se escolhem algumas coisas do passado pois podem ser úteis no futuro. Não é uma conservação nostálgica, de arrependimento ou reacionário. Procuro no tempo tanto as raízes do futuro como os frutos do passado.
Nesse sentido, o tempo nos meus filmes tem um transcorrer particular. Em ``A Família", por exemplo, passam 80 anos de vida num corredor. Em ``Um Dia Muito Particular", o tempo é quase real. A dimensão do tempo está sempre presente, com uma função e importância. Procuro sempre evitar, porém, o arrependimento pelo tempo que passa. No máximo, o arrependimento pelo tempo perdido. Como dizia Seneca, tenha piedade do tempo, pois é a coisa mais importante que temos.
Essa influência do tempo acaba influenciando a minha linguagem. Para dar a idéia da contemporaneidade, uso rupturas de linguagem.
Folha - Como em ``Casanova e a Revolução".
Scola - Sim, onde há a contemporaneidade. Aquela máquina do século 18, na qual as pessoas vão olhar imagens, é o cinema.
Folha - E a história?
Scola - É um derivado do tempo. Há a grande história, oficial, que não me interessa. Interessam-me os reflexos dela na história das pessoas comuns. Assim, se há uma visita de Hitler a Mussolini (``Um Dia Muito Especial") ou a fuga de um rei (``Casanova"), não me interessa mostrar os dois ditadores ou Luis 16. Não saberia o que contar, como fazê-los falar.
Mas me interessam a noite em que o rei foge ou o dia da visita para ver quais as consequências para as pessoas comuns. Não me interessa o cinema com grandes personagens, com os heróis, como o cinema americano. Eu sou mais pelos pequenos, pelos diferentes.
Folha - E os sentimentos?
Scola - Em quase todos os meus filmes há uma história de amizade ou de amor. Os sentimentos como expressão, como direito das pessoas comuns de afirmar a sua história, talvez mais importante que a história oficial.
Folha - Por que fazer cinema?
Scola - Não sei. Comecei como desenhista. Depois passei a roteirista. Escrevi vários roteiros assinados por outros, o que na Itália chamamos de ``fare il negro". Depois passei à direção. A minha iniciação foi tranquila, pouco traumática, sem decisões fatais. Sim, tive de decidir não ser médico, como queriam minha mãe e meu pai, que era médico. Depois de dois anos de medicina, larguei a faculdade. Fiz Direito, não porque gostasse, mas porque era mais fácil e me dava tempo para trabalhar.
Mas por que fazer cinema? Não nos colocávamos essa pergunta 40 anos atrás. Hoje o cinema se tornou uma necessidade maior. Atrai mais os jovens. Nos anos 50, eram poucos que queriam fazer cinema em Roma. Hoje há essa maior vontade de se exprimir pelas imagens, uma maior importância das imagens na vida cotidiana. E uma vontade maior de se questionar sobre isso.
Folha - Quem e o que o influenciaram?
Scola - Certamente o desenho, que supria mais a necessidade de imagens na época. A fascinação pelo cinema, que eu via desde pequeno, as comédias do Gordo e o Magro e Chaplin, com suas risadas liberatórias, tristes e dramáticas. E depois o neo-realismo, com os seus grandes mestres.
O neo-realismo surgiu depois de 20 anos de cinema fascista, o cinema do telefone branco, no qual tudo deveria ser limpo, bonito, bom e branco, até o telefone, numa época na qual os aparelhos eram pretos. Assim, depois daquele cinema bastante fechado, opaco, explodiu no pós-guerra o neo-realismo. Eu tinha uns 14 anos e me deixei conquistar facilmente por aquele modo diferente de contar as coisas, pelas histórias que seguiam os homens, que aconteciam nas ruas, que não eram construídas em teatros e estúdios. Com gente, lugares e aventuras reconhecíveis.
Folha - Dos seus filmes, quais o sr. gosta mais. Não vale dizer que são como os filhos, que gostamos de todos?
Scola - Bem, normalmente respondemos assim. Não gostaria de repetir um daqueles três ou quatro aos quais as pessoas me associam. Não é que os ame menos, mas são mais óbvios. Talvez um filme um pouco mais secreto, que teve menos sorte, tipo ``Trevico-Torino" (1972), que nunca saiu da Itália.
É um filme sobre um emigrante da minha cidade, Trevico, que vai a Turim procurar trabalho na Fiat. Um camponês diante e dentro da fábrica, junto com milhares de outros operários. A mudança de seu papel, de camponês a operário, e o impacto com uma cidade hostil e até um pouco racista como era Turim à época. Era um filme sulista.
Folha - Que filme o sr. gosta menos?
Scola - Nunca fiz um filme do qual não gostasse. Sempre evitei fazer um filme que eu não tivesse escrito, de êxito comercial certo. Isso talvez tenha me tornado mais difícil a vida prática, mas mais fácil a vida psicológica. Assim, se não gostava do filme, não o fazia.
Folha - Um personalidade do cinema que o marcou?
Scola - Massimo Troisi, o comediante, que morreu recentemente e com quem fiz três filmes (``Splendor", ``Che Ora É" e ``A Viagem do Capitão Tornado"). Não deve ser muito conhecido no exterior, mas era uma personalidade sensacional, forte e doce. Mas claro que é marcante trabalhar com atores como Alberto Sordi, Vittorio Gasmann, Marcello Mastroianni e Ugo Tognazzi.
Folha - Sua militância política atrapalhou sua carreira?
Scola - Não. Certamente meus 30 anos no Partido Comunista Italiano (hoje PDS, Partido Democrático da Esquerda) não facilitaram nada. Os produtores ficavam preocupados e desconfiavam. Frequentemente tive de recorrer a amigos para financiar meus filmes. Eles podem não ter ganhado muito, mas não perderam. Mas nunca tive problemas como censura, etc.
Folha - A sua experiência política influenciou seus filmes?
Scola - Não. A idéia de um governo ``sombra" foi importantíssima, especialmente num país que teve só governos de direita, 50 anos antes da guerra e 40 anos depois. É um governo que assessora, que propõe coisas ao governo oficial. Começamos com isso em 89. Dois meses depois houve a reviravolta da queda do Muro de Berlim. O governo ``sombra" do qual participei acabou durando só dois meses.
Folha - O sr. se considera um cineastas de esquerda?
Scola - Eu nunca acreditei muito nessas divisões. Creio que existem filmes bons e ruins. O bom filme, que representa com sinceridade a vontade de mudança inerente ao gênero humano, me parece ser automaticamente de esquerda. O cinema etimologicamente, como kinema, como movimento, é de esquerda. Não creio que possa ser estático e nostálgico.
Folha - Uma grande frustração com o cinema?
Scola - Cada filme deixa o diretor um pouco frustrado. A obra acabada, concluída, é diferente do filme que se pensava quando a idéia nasceu. O pensamento humano é mais misterioso, mais aberto do que uma câmera pode captar.
Folha - O cinema ainda fascina o sr.?
Scola - Hoje é mais fácil e, ao mesmo tempo, mais difícil de se deixar fascinar. Há mais pontos de distribuição de imagem que no passado. Mas talvez mais difícil, devido à relação conflituosa com a TV. Na Itália, há dezenas de TVs privadas, regionais, que transmitem centenas de filmes diariamente.
Isso causa danos às salas, mas também à linguagem cinematográfica, pois nenhum criança ficará mais fascinada como fiquei eu. Não se vê mais o cinema na sua complexidade, na sua condição tribal, junto com outras pessoas no mistério do escuro. O que se vê é um universo pequeno, cortado por anúncios de publicidade.
Folha - O sr. acha que a tela grande desaparecerá?
Scola - Não, mas certamente haverá uma fruição diferente. Especialmente quando houver um maior respeito entre TV e cinema (na Itália não há, mas existe em outros países). O cinema terá sempre o seu espaço. Ele tem um tempo de reflexão e de emoção diferente, que a TV não comporta.
Folha O cinema envelheceu bem nesses cem anos?
Scola - São cem anos relativos não a uma vida humana, mas à vida de uma expressividade, como cem anos de música, de literatura ou de pintura. Creio que seja ainda o início do cinema. Como não acho que o cinema morrerá, diria que está tendo uma bela infância.
Pois, se compararmos com a literatura, Dante apareceu 300 anos depois do ano 1000, quando começamos a ter obras escritas não transmitidas oralmente. É preciso tempo, mas o cinema teve uma boa infância nesse primeiro século.
Folha - Quais são hoje as grandes discussões do cinema, ou o cinema não gera mais discussões importantes?
Scola - Acredito que comum entre todos os países seja o discurso da defesa da originalidade da própria cultura cinematográfica, que vem sendo colocada em perigo por indústrias mais fortes e bem-protegidas, especialmente a norte-americana.
Na Itália temos atualmente somente 700 salas funcionando. Três filmes americanos com 200 cópias praticamente ocupam o mercado italiano. Não há vitrine para o que é feito na Itália. Num certo momento tende-se a não fazer mais, ou fazer sempre menos.
Isso é ruim para quem faz cinema, mas é também um grande dano para o espectador, que terá o eco de uma só cultura. Nós não sabemos o que se faz na Albânia. No Brasil não se sabe bem o que se faz no outros países, sabe-se somente o que os EUA sugerem. É um dano enorme.

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