São Paulo, domingo, 21 de maio de 1995
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A aguda sintonia de Monteiro Lobato

MARISA LAJOLO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Corria o ano da graça de 1918.
Numa Europa estremecida, a guerra chegava ao fim, enquanto num Brasil espreguiçado Rodrigues Alves elegia-se presidente e também tinha início uma grande epidemia de gripe. É nesse ano de rescaldo, eleições e espirros, que Monteiro Lobato reúne vários contos no que constituiria seu livro de estréia, ``Urupês", que em um mês esgotava a edição. No ano seguinte, Rodrigues Alves morre de gripe e, na nova eleição, Epitácio Pessoa derrota Rui Barbosa. Em meio a movimentos grevistas, Lobato, repetindo a receita de reunir produções antigas, edita ``Cidades Mortas".
Um ano se passa.
Monteiro Lobato publica um terceiro (e último) livro de contos, ``Negrinha", em 1920, mesmo ano em que Paulo Setúbal publica ``Alma Cabocla", Waldomiro Silveira ``Os Caboclos" e Afrânio Peixoto ``Fruta do Mato".
Era a literatura brasileira que cruzava os anos 20 com cheiro de roça, sotaque caipira e cigarrinho de palha. Apesar, é claro, da euforia vanguardeira que articulava, numa semi-desvairada paulicéia, o que viria depois a ser o modernismo oficial, aquele proclamado em 1922 no Teatro Municipal da Praça Ramos de Azevedo. Como, dentre os quase 24 milhões de habitantes registrados no censo, só 6 milhões e pouco sabiam ler e escrever, não estranha muito que a tertúlia vanguardeira, sucesso duradouro de crítica, não tenha ressoado tanto no público, francamente favorável ao ressabiado regionalismo, cujos livros vendiam muito, sobretudo para a acanhada cifra de leitores disponíveis...
São dois destes livros inaugurais de Lobato, ``Urupês" e ``Negrinha" que a Editora Brasiliense relança agora em bonitos volumes de capa cartonada e colorida, assinada por Maria Eliana Paiva. Neles o prezado leitor pode conferir as contas da crítica e, de troco, divertir-se muito.
Trata-se do melhor Lobato.
Em ``Urupês" e ``Negrinha" comparecem os diferentes brasis que até hoje, sob diferentes formas, assombram as esquinas da nossa história. Os contos contam do trabalho do menor, do parasitismo da burocracia, da violência contra negros, imigrantes e mulheres, da empáfia dos que mandam, do crescimento desordenado das cidades, da degradação progressiva da vida interiorana; enfim, os contos contam do preço alto do surto de modernidade autofágica que desemboca na crise de 30.
Na boca de cena, a aguda sintonia de Lobato com um tempo que reclamava novas linguagens.
Tais linguagens traduzem-se, nestes livros, tanto na oralidade que orquestra as histórias, inscrevendo os contos na genealogia dos causos desfiados ao pé do ouvido, quanto nas frequentes menções ao cinema e ao mundo dos filmes. Se ``O Matapau" (de ``Urupês") é um bom exemplo da oralidade, ``Marabá" (de ``Negrinha") é um prato cheio de roteiros, atores e letreiros.
Pois, já em 1920, a paulicéia, modorrentamente desvairada ia ao cinema. E parecia gostar muito. E se reencontrava o cinema nos contos de Lobato, também encontrava os contos de Lobato no cinema. Dirigida por Miguel Milano e Antonio Leite, o longa metragem ``Os Faroleiros" tem roteiro inspirado no conto homônimo (de ``Urupês") de Monteiro Lobato que, inclusive, assessora a adaptação.
Mais de 30 anos depois, outro conto de Lobato volta ao cinema quando, em setembro de 1951, entra em cartaz ``O Comprador de Fazendas" (também de ``Urupês") a partir de roteiro de Mário del Rio, Guilherme de Figueiredo e Miroel Silveira. Mesmo sem assessoria de Lobato (que morrera em 1948), era tudo papa fina. Aliás, papa finíssima: estrelando, nada menos do que Procópio Ferreira, Henriette Morineau e Hélio Souto. Sucesso de crítica e de público.
Mas é em 1959 que a aliança de Lobato com o cinema torna-se definitiva: Milton Amaral inspira na lobatiana figura de Jeca Tatu a criação do tipo que imortalizou Mazzaropi. O Jeca que hoje conhecemos chegou ao cinema na trilha de Genésio Arruda que, desde o final dos anos 20, tinha criado o tipo do caipira, cujo contraponto eram os frequentadíssimos espetáculos de Cornélio Pires.
Por tudo isso, esta reedição de ``Urupês" e de ``Negrinha" celebra uma mais que oportuna redescoberta de Lobato, de sua sensibilidade precursora que, falando de seu tempo, antecipa o nosso, com nossas linguagens nas quais o jeca continua tatu, mas virou sem terra. Redescoberta, pois, além de oportuna, festiva.
Pena, no entanto, que o reencontro leitor-Lobato não possa ser festa pura. Porque a edição é descuidada e desatenta.
Fecha ambos os livros, por exemplo, mero alinhavo do que poderia vir a ser -se e quando articulado- uma biografia de Lobato. E abre os dois livros a transcrição de um antigo manifesto que, em tom divertido e irreverente proclama a independência de Lobato face a normas e acordos ortográficos.
É esta abertura, sobretudo, que deixa a platéia boquiaberta e perplexa com o acréscimo de três linhas -nem sempre graficamente separadas do texto original- que informa, sem mais aquela, que para a edição atual optou-se por seguir o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa -o que atropela espírito e letra das duas e meia páginas nas quais se desanca a rabugice das normas ortográficas...
Mas tais descuidos desatentos não comprometem a importância do relançamento. Afinal, biografias de Lobato não faltam, acentos são só acentos, estamos cruzando (mais) uma reforma ortográfica, e, sobretudo, o que vale de verdade num livro de contos são os próprios contos, e não os apêndices que a eles se apendem... O choque com o desmazelo da edição fica por conta de que Lobato e a Brasiliense vive(ra)m uma parceria antiga e que é feio destratar assim um velho parceiro.

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