São Paulo, domingo, 21 de maio de 1995
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Apenas um poste

MARIO VITOR SANTOS

Um homem alivia-se à beira da rua. A democracia entra em crise
Visitas à zona do Mangue, onde ficavam as prostitutas no centro do Rio, sempre eram cheias de sensações. Cercas de madeira limitavam a área, as casas caíam aos pedaços, portas e janelas abertas. Lá dentro, imagens de santos em nichos iluminados com lampadinhas azuis, verdes ou rosas.
As mulheres ficavam encostadas no alto das escadas, nas portas das casas. Algumas jovens. Também havia muitas senhoras, de aparência cansada, só de calcinha.
As mais animadas giravam o punho com o indicador e o polegar unidos em círculo e movimentavam a língua para dentro e fora da boca.
Os homens paravam em baixo, olhando, ouvindo a música muito alta. De vez em quando, um subia para conversar, acertar preço.
Em quase todas as esquinas da área, hoje ocupada por um centro administrativo da Prefeitura do Rio, vendia-se uma espécie de churrasquinho -a carne era preparada em espetos apoiados nas bordas de latas velhas e grandes de óleo de cozinha.
Quando o churrasqueiro abanava o carvão, subia um cheiro de carne queimada, sobrepujando o odor nauseante que predominava. O Mangue não tinha esgoto, as casas pareciam ser do tempo do império.
Quem saía das casas, depois de visitar a prostituta, urinava ali mesmo, na primeira parede que encontrava. Os banheiros das casas não eram permitidos aos fregueses. Era fedorento, mas não violento.
A imagem daqueles homens inclinados junto à parede no Mangue vem à cabeça quando vejo uma cena que vez por outra ocorre em São Paulo. Um carro parado na beira da rua e alguém urinando ali mesmo.
Não se trata mais apenas de uma atitute irreverente, de adolescente. O costume está se disseminando. Numa cidade com raríssimos banheiros públicos, em que não existem nem cestos de lixo nas ruas mais movimentadas, até que essa transgressão se perde em meio a tantas outras carências.
Bem mais grave é dar de cara na TV com um filme publicitário que mostra um homem aliviando-se inocentemente no poste, à beira da rua, sem qualquer cerimônia.
Um jingle até tenta fazer reparos à "atitude, mas com uma leveza, uma musicalidade diante da cena, que mais parece um comentário divertido e tolerante.
O problema da democracia, como diz o escritor Umberto Eco, em entrevista ao psicanalista Contardo Caligaris publicada no caderno Mais!, é que os cidadãos não conseguem mais compartilhar uma noção de bem comum. Num exemplo hipotético, Eco diz que ninguém pode impedir ninguém de defecar (com perdão do eufemismo), mas, se alguém vem defecar diante da casa de outra pessoa, não está certo, ou seja, a democracia entra em crise. No Brasil, com uma ligeira alteração, nós já estamos saindo da hipótese de Eco para a prática. E a propaganda legitima.

Ilustração: "Curious Woman, de Allen Jones. Óleo sobre madeira, 1964-65

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