São Paulo, terça-feira, 23 de maio de 1995
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Os bois de piranha da crise agrícola

HEIGUIBERTO GUIBA DELLA BELLA NAVARRO; VALTENICE DE ARAÚJO

HEIGUIBERTO GUIBA DELLA BELLA NAVARRO e VALTENICE DE ARAÚJO
O setor agrícola vem passando de uma certa estabilidade, alcançada nos últimos dois anos, para uma situação de enorme incerteza. Pelo interior do país sabe-se que vários agricultores não vêm pagando seus fornecedores e trabalhadores. Não estão também comprando tratores e fertilizantes. E nas cidades o reflexo da crise agrícola já se faz sentir, inclusive com a interrupção da produção de indústrias e a possibilidade de desemprego de companheiros metalúrgicos.
Tudo isso tem como pano de fundo a falta de definição de uma política industrial e de uma política agrícola por parte do governo FHC. A indústria e a agricultura têm como único referencial um instável, inseguro e contido crescimento do consumo, promovido pela estabilidade momentânea da moeda, por sua vez debilmente ``ancorada" no represamento do câmbio e dos salários.
Na indústria, descem e sobem e descem as tarifas de importação ao sabor da conjuntura, sem qualquer vínculo com uma estratégia de longo prazo.
Na agricultura, são descasados a correção do financiamento agrícola e o reajuste dos preços mínimos, sem que se avalie as consequências, e não se assegura a existência de empréstimos subsidiados para os míni e pequenos agricultores, tradicionais abastecedores do mercado interno.
Entre 1992 e 1994, a produção brasileira de tratores e máquinas agrícolas automotrizes cresceu 137%; pulou de 21,5 mil para 50,9 mil unidades. Este cenário foi diametralmente oposto ao do período 1986/1991, quando a produção chegou a cair 70% e o emprego, 52%.
Nós, metalúrgicos, muito contribuímos para isso, ao participar da câmara setorial, formulando propostas e acordos que resultaram em incentivos à produção e ao consumo, através do sistema de financiamento para a compra de tratores e máquinas agrícolas, que somente em 1994 totalizou US$ 845 milhões (liberação dos recursos do Finame agrícola, linha de crédito do BNDES), boa parte dos quais provenientes do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador).
Nosso objetivo nessa câmara sempre foi o de buscar formular uma política agroindustrial que aliasse os interesses do país (incremento da produção, da mecanização do campo, aumento da produtividade e redução de preços dos alimentos) aos interesses dos trabalhadores (entre 1992 e 1995, houve o incremento de mais de 1.820 postos de trabalho).
Insistimos também na diferenciação de incentivos para pequenos e grandes agricultores, mas o governo pouco avançou nesse sentido. Infelizmente, o ``trator popular" (pequeno e de fácil acesso ao pequeno agricultor) não saiu do papel.
Agora, temos a queda-de-braço entre o governo e o grande setor ruralista, em razão do descompasso entre correção dos financiamentos pela Taxa Referencial de juros e preços mínimos congelados.
No início de abril, os parlamentares ligados ao setor derrubaram o veto presidencial que impedia a correção dos financiamentos pela mesma variação dos preços mínimos. Por sua vez, o governo retaliou com a suspensão do crédito agrícola (posteriormente esse crédito foi retomado, com a substituição da TR pela TJLP, também recusada pelo setor rural). Por outro lado, de modo irresponsável e oportunista, o lobby ruralista conclamou suas ``bases" a não comprar tratores, máquinas agrícolas e insumos.
O resultado de toda essa disputa tem sido a paralisia da atividade agrícola, a possibilidade de sérios problemas na oferta futura de alimentos para a população e a demissão de metalúrgicos.
Algumas empresas já começaram a demitir (caso da Fiat New Holland) e outras, como a Maxion e a Eaton, ameaçam com programas de demissões voluntárias.
Não aceitaremos que a população e os trabalhadores sejam usados como bois de piranha da crise agrícola.
Ao governo compete a definição de políticas públicas duradouras. Terá de definir, igualmente, uma política agrária e de relações de trabalho no campo socialmente mais justas, fazendo com que a discussão da crise agrícola não se resuma a um problema de financiamento, como querem fazer crer os grandes proprietários.
Às empresas ligadas à indústria de máquinas e insumos agrícolas deve ser exigido o cumprimento da cláusula relativa à manutenção do nível de emprego, não se utilizando do sempre fácil recurso às demissões para ajustar-se ao momento crítico provocado pelo conflito entre governo e proprietários rurais.
Delas devemos cobrar, também, o desenvolvimento de novos produtos, com melhor qualidade e sofisticação tecnológica, já que se utilizam dos recursos públicos para o financiamento de seus produtos.
Queremos uma discussão aberta sobre os rumos do desenvolvimento do setor.
Só para se ter uma idéia, no Brasil há ainda mais carros de boi do que tratores (estimam-se 2 milhões de carros com tração animal, contra pouco mais de meio milhão de veículos motorizados); a idade média das máquinas agrícolas é de 13 anos (o ideal é em torno de sete anos no máximo); e a relação é de um trator para cada 15,1 mil hectares!
Infelizmente, como em diversos outros setores, o governo atual vai destruindo a câmara setorial de máquinas agrícolas, seja por um calculado abandono, seja pela sua indefinição e desarticulação entre ministérios, como um fórum essencial para a discussão democrática da política industrial para o setor de máquinas agrícolas.

HEIGUIBERTO GUIBA DELLA BELLA NAVARRO, 49, é presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e da Confederação Nacional dos Metalúrgicos da CUT (Central Única dos Trabalhadores).

VALTENICE DE ARAÚJO, 38, é diretor do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, trabalhador da Maxion e participante pelo sindicato na câmara setorial de tratores e máquinas agrícolas.

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