São Paulo, quinta-feira, 25 de maio de 1995
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Brasília, urgente

OTAVIO FRIAS FILHO

Há uma crise em Brasília. Os sinais ainda são esparsos e pouco visíveis, mas a coisa está para eclodir a qualquer momento. Quem passou recentemente por Brasília percebeu algo de soturno, perturbador, no mormaço pesado do ar.
Tudo começou com a visita de um antropólogo gringo que se meteu a atacar a cidade de Niemeyer. Nunca ninguém ousara defender Brasília como cidade, mas aquela foi, parece, a primeira vez que alguém tinha o topete de desqualificá-la como obra de arte.
Desde então só cresce o número de pessoas que acham Brasília não só inabitável, mas medonha. Suas propriedades sociológicas se transmitiram à estética e ela se mostra acadêmica, insípida, decadente. O stalinismo de Niemeyer, encoberto pela lírica bossa-nova, irrompe a olho nu.
Cedo ou tarde, Brasília teria de enfrentar o teste definitivo: como manter a identidade de uma arquitetura que revoga a própria idéia de identidade, como preservar uma cidade futurista? Esse o paradoxo de Malraux, quando conjecturou sobre que belas ruínas Brasília daria.
A profecia se cumpre, a própria cidade viva, real, sabota o plano piloto agora também no sentido arquitetônico, além do demográfico. Fiel a sua única tradição -o frenesi imobiliário-, Brasília está coalhada de prédios pós-modernos prestes a funcionar.
A idéia é desfigurar. Já que Brasília não pode ser erradicada, já que recuar a capital para o Rio é capricho que não está ao alcance nem mesmo do chefão Roberto Marinho, o negócio é destruí-la ``in loco", sob colunas dóricas e arcos mussolinianos. Morte ao moderno, urram os prédios recentes.
Collor, que levou a política e a economia brasileiras ao estágio pós-moderno, introduziu o pós-modernismo também na arquitetura local, por intermédio de dois antigos companheiros de farra que até hoje dominam o panorama imobiliário da cidade.
Uma besteira pós-moderna passa batido na balbúrdia, por exemplo, de São Paulo, mas em Brasília ela é um tapa na cara, uma ofensa aos sentidos, tão grave quanto revestir uma catedral de parangolés, como pintar um bigode na Pietá de Michelangelo.
Só compreende Brasília quem a toma como síntese de uma época em que quase unificamos o original e o cosmopolita no interior da nossa cultura. Foi o tempo de Guimarães Rosa, das bienais, de João Cabral e da poesia concreta, do Centro Popular de Cultura, do cinema novo, foi o ápice de Nelson Rodrigues.
Se houve uma Renascença brasileira foi nesse curto período, fim dos 50 e começo dos 60, em que prevaleceu uma trêmula aliança entre interno e externo, folclore e vanguarda, erudito e popular, litoral e sertão, quando se esboçava, afinal, uma unidade estilística no país.
O ciclo militar abortou essa unidade, mostrou que ela era fantasiosa e reinstalou o antagonismo entre civilização e barbárie. Mantida em formol burocrático, Brasília ficou uma alucinação a prefigurar a harmonia nunca realizada, enquanto o país mergulhava no kitsch psicodélico, subversivo e ditatorial.
Brasília pode ser o marco da nossa desilusão, isso apenas a nobilita como arte. Está na base da endemia inflacionária que até hoje tentamos debelar, mas a arquitetura não tem nada a ver com o pato.
A cidade é o testemunho do que fracassamos em ser. Deveria ser respeitada como ex-utopia e pós-relíquia, esplendidamente moderna, produto da invenção humana, pois o Pão-de-Açúcar está ali por acaso, mas Brasília não. Brasília fomos nós.

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