São Paulo, sexta-feira, 26 de maio de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Humilhação e prosperidade

ARNALDO CARRILHO

Não são muitos os países que suportam a existência de porções de seus territórios fora do alcance de suas soberanias, isto é, nas mãos de outros. São contudo vários os povos que estão secularmente obrigados a viver encravados em espaços nacionais que não correspondem aos de suas culturas e seus sonhos.
Os encraves são, em geral, focos de tensões internas, já que se originaram de humilhações históricas persistentes e tornam-se causas de conflitos.
Há países que não se contentam com suas fronteiras, inclusive na América do Sul, e há os que foram criados, por injunções da história recente, sem que jamais tivessem oportunidades de qualquer experiência de autonomia nacional no passado. No universo pós-bipolar inaugurado pela queda do Muro de Berlim, faz mais de cinco anos que ressurgem questões nacionais, na esteira de impérios e regimes até então tidos como sólidos e definitivos.
Até 1989, apenas cinco encraves eram admitidos, e ainda o são, pela comunidade internacional: Gibraltar, Ceuta, Melilha, Hong Kong e Macau. Desde a sua tomada ``manu militari", não degeneraram em guerra, talvez porque a maioria da população local não fosse a da potência ocupante, mas da ocupada, partícipe, em consequência, de ``fringe benefits" do sistema econômico instalado pela primeira.
O penhasco (``Jebel") em que desembarcou o berbere islamizado Tárik (Jebel + Tárik = Gibraltar) em 709, para implementar o projeto árabe de ``El-Andalus" (Vandalusia, terra dos vândalos); as duas cunhas espanholas em Marrocos, hoje partes de Cádiz e Málaga, uma anexada pelos portugueses em 1415, evento que marca o início do colonial-imperialismo do Ocidente pelo mundo afora; e as conquistas lusitana (1557) e britânica (1842) na China, nestas últimas décadas placas giratórias do maior surto de desenvolvimento do século -todos esses feitos não inspiram cuidados especiais no momento.
No caso da China, cabe recordar que, em 1949, as forças comunistas do Exército Popular de Libertação, comandadas no Sudeste por Lin Piao, receberam ordens de não invadir os encraves de Hong Kong e Macau. Os tempos não estavam maduros para sua reintegração, o que ficaria para mais tarde, mediante negociações pacíficas.
Em 1978, Teng Hsiao-ping já no poder, Pequim indicou seu ministro do Comércio Exterior para visitar Hong Kong, o qual convidou o governador britânico da colônia a ir à capital chinesa. Era o ano do início da abertura e política de reformas de Teng.
Sob a sua diretriz, seis anos depois é assinada a Declaração Conjunta sino-britânica, inspirada no princípio ``um país e dois sistemas", segundo a qual Hong Kong será reincorporado à soberania chinesa a 1/7/97. Outra declaração foi assinada entre Lisboa e Pequim, na qual está previsto o desmantelamento da administração portuguesa em Macau a 20/12/99.
A China propõe aos formosinos o mesmo sistema, porém cabe a estes fugir ao cerco das intrigas internacionais que remontam à Guerra Fria e pôr-se no rumo do restabelecimento de relações mais firmes com a mãe-pátria.
Os chineses, de extração budista, confucionista e taoísta, logo inspirados por ``religiões-pensamento" e crentes nas dialéticas da geomancia e das forças de iniciativa-recepção do ``yang-yin", têm os pés na terra. Isso tudo forjou-lhes uma concepção única da natureza celestial e de felicidade aqui embaixo, mediante um raciocínio seletivo e mais propenso às sínteses que aos impulsos analíticos que caracterizam o procedimento ocidental. O que vulgarmente se chama de paciência chinesa nada mais é que um exercício interiormente movimentado, em torno de vetores em jogo e depuração de resultados.
Eis porque, no bem e no mal, os orientais procuram a ``via do meio", tendo a genialidade de integrarem os contrários harmonicamente, e com grande proveito. Assim, se sua desvantagem maior é o contingente multitudinário de uma população de 1,2 bilhão de pessoas, implementam políticas para transformar essa carga em vantagem.
Os encraves, por exemplo, estão sob gestão estrangeira. Então, um problema como o do excesso de população passa pelo crivo autocrático da limitação das famílias a um só filho, de um lado; à compressão do consumo, de outro; e ao trabalho intensivo e a baixas remunerações, de mais outro. O resultado é que a máquina produtiva se move e acelera de ritmo, na medida em que os encraves capitalistas já transnacionalizados invistam e recebam da China, em contrapartida, empates de capitais lucrativos.
Cercada de cuidados preliminares, a China não se peja em ser explorada pelo capital estrangeiro faz 17 anos, de modo que os encraves da humilhação se tornaram fontes de prosperidade.
O resultado é simples, portanto, conforme o demonstram dados homologados pela Organização Mundial de Comércio, pelo Banco Mundial e FMI. No ano passado, o volume de comércio de mercadorias de Hong Kong com o exterior atingiu US$ 313,2 bilhões; o da China, US$ 236,9 bilhões; o de Formosa, US$ 182,7 bilhões e o de Macau, US$ 5,2 bilhões (apenas 390 mil habitantes, concentrados em 18 km2).
Em outras palavras, a AEC (Área Econômica Chinesa) foi responsável por US$ 748 bilhões no intercâmbio mundial de US$ 4,06 trilhões em bens.
Não se dispõem ainda das estatísticas de serviços comerciais e financeiros, conquanto não seja difícil concluir que há encraves de progresso, como os na China, de confusões (cf. Nagorno-Kharabá, Gaza, Jericó, Golan, Sul do Líbano), de conflitos (Krajina, sérvio-bósnios e sérvio-croatas) e de tensões (romeno-moldávios, húngaro-romenos, berbero-árabes).
Só o ancinho da globalização poderá desfazer essas agonias, cujas misérias não passam de obstáculos à preservação de seus particularismos culturais e à afirmação de seus valores de conveniência sociopolítica. A rigor, nem todos os encraves são malditos, Hong Kong e Macau que o digam.

Texto Anterior: Resistir para realizar
Próximo Texto: Petroleiros; Maus-tratos; Oklahoma; Som Brasil; Bananas; Cientistas
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.