São Paulo, domingo, 28 de maio de 1995
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Sobre mitos e espoliações

ROBERTO CAMPOS

Defender a Previdência, como justa ou democrática, ou é má-fé ou é piada de mal gosto
``Na política, todos os amigos são falsos; todos os inimigos, reais."
(Provérbio mexicano)

No estatismo brasileiro, há toda uma mitologia que é preciso desmistificar. Citemos quatro mitos:
As empresas públicas pertencem ao povo;
As empresas públicas do setor produtivo são rentáveis;
As empresas públicas são controladas pelo governo;
As empresas estratégicas devem ser estatais.
Tudo isso é falso. As empresas públicas não pertencem ao povo e sim aos funcionários que a tripulam e aos políticos que as manipulam. Só se tornarão públicas quando forem privatizadas, e um bom meio de fazê-lo imediatamente seria, aliás, a entrega de ações de estatais aos ``fundos sociais", como o FGTS, em pagamento de dívidas do Tesouro. Estar-se-ia dando um passo para o capitalismo do povo.
Não há empresas públicas rentáveis para o Tesouro. Mesmo a melhor delas, a Vale do Rio Doce (melhor, porque opera em regime competitivo, sem a muleta do monopólio) apenas empata, pois que os dividendos pagos ao Tesouro, ao longo de 42 anos de vida, são equivalentes ao capital investido. O Tesouro só lucrará quando vender o patrimônio, isto é, quando privatizar. Das outras nem é bom falar. A Petrossauro é um misto de paraíso fiscal e instituto de previdência. Paga sobre o capital do Tesouro menos de 1% de dividendos anuais, e seria fortemente deficitária se lhe fossem cobradas as taxas de exploração, ``royalties", dividendos e impostos, a que estão sujeitas as empresas internacionais de petróleo. Em eletricidade e telecomunicações conseguimos uma façanha: o fluxo de recursos para o Tesouro é negativo, pois os aportes do erário excedem de muito os dividendos recebidos.
É também ilusório pensar que o governo efetivamente controle suas grandes empresas. Elas são Estados dentro do Estado. Na hierarquia de fidelidade dos dinossauros, vem primeiro o funcionário; depois, o sindicato (habitualmente filiado à CUT); depois a empresa; depois o partido político no poder; depois o governo. E o povo?... Ora... o povo é um detalhe. Se alguma dúvida houvesse, basta atentar para a greve dos petroleiros da CUT, que desafia a um tempo a Justiça, o governo e os consumidores. Diante disso, se o Congresso não aprovar a abolição do monopólio petrolífero, estará se passando a si mesmo um atestado de burrice. E, o que é mais grave, demonstrando desamor ao povo...
Finalmente, não existem ``empresas estratégicas". São as atividades e não as empresas que são estratégicas. Nos Estados Unidos -que são a única superpotência militar restante- as atividades ``estratégicas" de energia, telecomunicações e fabricação de armamentos são realizadas por empresas privadas. Só duas coisas são necessárias para atender aos interesses estratégicos -eficiência nos serviços, e o exercício, pelo governo, do poder eminente de legislar, tributar, regulamentar e requisitar. O governo não precisa ser acionista de empresas para exercer tais poderes.
Dos mitos, passemos às ``espoliações". A Previdência Social compulsória e a universidade pública gratuita são formas de espoliação aplicadas pela classe média aos pobres.
Somos todos compelidos, ricos, remediados e pobres, a contribuir compulsoriamente para o INSS. Isso nos priva do direito democrático de optarmos por um guardião mais confiável de nossas poupanças. Essa contribuição para o Estado ``benevolente" se tornou um instrumento de espoliação, pela combinação de três fatores: a) ``o sistema de repartição", em que o dinheiro cai numa vala comum, sem correspondência direta entre a poupança individual capitalizada e o benefício recebido; b) a aposentadoria por tempo de serviço, que encurta a fase contributiva (receita) e alonga o período de desfrute (despesas); e c) as aposentadorias especiais, pelas quais certos grupos com capacidade de pressão política, como congressistas, juízes, professores, jornalistas, funcionários de estatais, obtêm aposentadorias precoces, e às vezes múltiplas. Em alguns casos, com salários superiores aos da atividade, o que é um prêmio ao ócio, aberrante das praxes mundiais.
Os dados do INSS são cruéis. São em geral os trabalhadores pobres que se aposentam mais tarde (a média era de 62 anos em 1993), enquanto que os aposentados ``especiais" se tornam inativos, em média, aos 53 anos. Assim, os trabalhadores de baixa renda são os principais financiadores da Previdência.
Defender o atual sistema previdenciário, como justo e democrático, ou é má-fé ou é piada de mau gosto!
As emendas constitucionais apresentadas pelo governo visam a corrigir as distorções mais graves. Mas são um remendo e não um remédio. A única solução definitiva seria a mudança para um sistema de capitalização da poupança individual. Neste, desapareceria o problema do tempo de serviço e cessaria a pressão política para criação de privilégios grupais. Pois o benefício seria matematicamente igual à poupança individual capitalizada no tempo. Sabendo-se que o governo é mau aplicador de recursos, a consequência natural seria a privatização da Previdência, como no exemplo pioneiro chileno, já imitado em vários países latino-americanos e que começa a despertar a atenção de europeus e norte-americanos.
O modelo chileno mata dois coelhos de uma só cajadada. Impede que grupos se mobilizem para colher vantagens especiais e transforma a Previdência Social numa alavanca de desenvolvimento, ao criar fontes de financiamento privado a médio prazo para finalidades produtivas.
Uma outra forma elegante de espoliação são as universidades públicas gratuitas. A gratuidade tem vários defeitos. Não induz os pais a exigirem a qualidade, pois não sentem o ônus financeiro da má escolha. As universidades se dão ao luxo de sustentar ramos acadêmicos irrelevantes para o mercado de trabalho. Viceja o grevismo discente e docente, pois recebem-se verbas independentemente de avaliação custo-benefício. Os pobres concorrem com desvantagem às universidades públicas, pois não têm acesso a boas escolas secundárias e não podem pagar cursinhos preparatórios. A democratização da universidade só se alcançará com um sistema de educação paga, sendo distribuídos ``vales-educação" às famílias pobres, que assim teriam o direito de optar, como o fazem os ricos, entre a universidade leiga ou confessional, pública ou privada. É o sistema previsto, porém nunca implementado, da Constituição de 1967.
No Brasil não só as leis não ``pegam". As constituições também. Na prolixa carta de 1988, por exemplo, o artigo 60 das disposições transitórias determina que 50% dos recursos orçamentários vinculados à educação sejam aplicados, por um decênio, na educação básica, visando à erradicação do analfabetismo. Já se passaram sete anos, e o Ministério da Educação continua despendendo cerca de 70% de seus recursos com a educação universitária, a um custo médio por aluno muito superior à média mundial.
A previdência pública compulsória e a universidade pública gratuita, longe de serem projeções do Estado benevolente, tornaram-se instrumentos de espoliação das massas pelas elites.

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