São Paulo, domingo, 28 de maio de 1995
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O sexo em pedaços de Zumbi

FERNANDO CONCEIÇÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Zumbi, já disse o movimento negro brasileiro há tempos, não deve ser visto apenas como herói dos negros. Independentemente de sua preferência sexual, ele simboliza a luta pela liberdade, contra a opressão, pela verdade que não possui donos. Zumbi é herói para todos aqueles que assim o queiram ver. Por isto, no Brasil, os que tudo fizeram para resgatar sua importância histórica aceitam o desafio de percebê-lo integralmente, incluindo a sua sexualidade.
"Enquanto não se provar o contrário, com o exigido rigor documental, estas cinco pistas permitem-nos afirmar que o grande Zumbi dos Palmares provavelmente era amante do mesmo sexo -escreveu o doutor em antropologia Luiz Mott, com a mesma cara-de-pau dos falsários que praticam ciência na academia utilizando-se do conhecido método do "chutômetro.
Historicamente o movimento negro sempre esteve aliado a causas válidas, e assim fez no aparecimento e na constituição do Grupo Gay da Bahia (GGB). Aproveito para condenar a violência de que Mott foi vítima ao ter seu patrimônio material atingido -seja por negros ou brancos.
As "cinco pistas oferecidas pelo doutor em antropologia ávido em obter espaço na mídia, se comprovam alguma coisa é a pouca seriedade com que ele, enquanto antropólogo, é acolhido entre os seus pares na mesma matéria. O Mott cientista ainda está na fase rasa do conhecimento, ao contrário do Mott militante da causa homossexual, com seu discurso "politicamente correto mas também eivado de machismo. Embora integrante de um grupo discriminado, suas atitudes revelam o quanto de sua personalidade se deixou levar pelo preconceito racial.
Por que ele tem de propagandear, num dos seus textos divulgados pela Folha, ser casado com um negro? Somente para passar atestado de que não é racista? Se estou razoavelmente informado, a primeira dissidência surgida no GGB, em meados dos anos 80, partiu da parcela de homossexuais negros que saiu daquele grupo - criando o Grupo Adé Dudu de Negros Homossexuais e denunciando as práticas racistas de Mott.
Suas "cinco pistas não têm o rigor documental que ele exige dos que venham contestá-lo, por isso me julgo na possibilidade de refutá-las. Primeiro: dizer que Zumbi não teve mulher ou filhos equivale dizer que Zumbi teve mulher e filhos, uma vez que ainda hoje as informações sobre a República dos Palmares ainda são insuficientes para traçar uma imagem satisfatória do cotidiano palmarino.
Zumbi, segundo Mott, seria homossexual porque teria "aberto mão do cobiçado prêmio de praticar a poligamia, isto é, ter várias mulheres, numa comunidade onde existia carência delas. É inadmissível que ele não saiba de comunidades em que, havendo escassez de mulheres, se admite o relacionamento sexual de uma mesma mulher com vários homens.
O termo "Sueco (e não o "apelido sueca, como quis Mott), atribuído a Zumbi e apresentado como "pista por Mott, deriva do idioma quicongo e, a depender do contexto, pode significar "invisibilidade. No caso específico, poderia ter referência ao fato de Zumbi, mesmo sendo caçado durante diversas batalhas, sempre ter conseguido escapar e "aparecer vivo mais adiante.
A terceira "pista de Mott é uma dissimulação da primeira com alguns acréscimos. Fala que Zumbi descendia dos jagas de Angola, "etnia onde a homossexualidade tinha numerosos adeptos, os famosos `quimbanda' . Aqui Mott, no seu delírio anti-heterossexual, perdeu totalmente as estribeiras, revelando um estúpido (ou premeditado?) desconhecimento quando o assunto é África.
Jagas eram povos guerreiros, mestiços, que desceram do Norte e adentraram a fronteira do que hoje se chama Angola. Há indícios de que os jagas eram antropófagos. A antropofagia ocorria porque se acreditava que, ao fazê-lo, apoderava-se da força do outro. Parece que Mott interpretou literalmente "comer por fornicar -termos substitutivos, copularmente falando, em nosso idioma.
Os adolescentes eram submetidos a um ritual iniciático, "comidos (metaforicamente) e assim incorporados como novos guerreiros. O termo "quimbanda é composto pelo prefixo "qui, também sinônimo de lugar, e N'banda, isto é, curandeiro. Nesse sentido, "quimbanda é o "curandeiro do lugar, nada a princípio tendo a ver com homossexual.
Dizer que por ter sido criado por um padre até os 15 anos e, pior ainda, ter comportamento "suave e habilidade artística faz de Zumbi, ou qualquer outro, um homossexual -isto é de um preconceito atroz! Mott garante que 1/3 dos padres condenados pela Inquisição estavam envolvidos pelo pecado de sodomia, o que o faz incluir o vigário de Porto Calvo, padre Melo, naquele índice. Não haveria a probabilidade estatística (2/3) de o padre Melo ser um daqueles denunciados pela Reforma como luxuriosos, como mulherengos e pais de prole extensa -como está documentado pela própria Igreja- ou mesmo ser celibatário?
"Diz-me com quem andas... e eu direi se vou contigo, estabeleceu o Barão de Itararé. Não seguirei Mott porque, para o líder do GGB, todos os que possuam suavidade no trato com seus semelhantes ou tenha habilidade artística estão compulsoriamente filiados ao GGB. Para ele, heterossexual tem de ser grosseiro e brucutu.
Quinta pista: "dizem os estudiosos (isto mesmo, "dizem os estudiosos) que Zumbi, ao ser executado, a 20 de novembro de 1695, foi degolado `sendo castrado e o pênis enfiado dentro da boca' . Isto, mais o "volumoso dossiê com casos de violência contra homossexuais que o GGB diz possuir, no qual, em sendo volumoso, constam cinco casos (apenas) "de gays, dois de Alagoas, a mesma região onde castraram Zumbi, que foram encontrados mortos exatamente como o chefe quilombola: com o pênis dentro da boca, seriam provas cabais de o líder negro ser também, 300 anos depois do seu assassínio, líder do movimento sexual brasileiro. Nada mau...
Meu companheiro de batalhas Luiz Mott não está fazendo ciência ao deturpar os fatos e subjugá-los a seus válidos interesses de militância política. O doutor em antropologia incorreu em desvio de conduta metodológica e corre o risco de perder a credibilidade científica que construiu com tanto esforço. Suas hipóteses carentes de substância e divulgadas sem qualquer rigor empírico, sua atual postura de vítima diante da reação dos "machões do movimento negro, sua retórica dogmática, raivosa e reivindicatória de infalibilidade, apontam para a face autoritária de um academicismo conservador, fascista, antiquado.
No fundo não se trata de buscar a verdade sobre a sexualidade de Zumbi, cujas "cinco pistas, cabendo em qualquer ser humano por todos podem ser rejeitadas, mas saber até que ponto Mott está mesmo interessado nela.

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