São Paulo, quarta-feira, 31 de maio de 1995
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Brasil _campeão mundial da usura

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Os insistentes protestos de muitos setores contra as taxas de juro têm sua razão de ser. O Banco Central vem praticando juros extravagantes, que ameaçam causar danos difíceis de reparar a muitas empresas, às finanças federais e a diversos governos estaduais, o de São Paulo entre eles.
Um levantamento dos juros de curto prazo praticados em 38 países para os quais há dados atualizados até maio, incluindo países desenvolvidos, do Leste Europeu e em desenvolvimento, mostra que as taxas de juro brasileiras são, de longe, as mais altas em termos reais.
Em termos nominais, só a Rússia e a Turquia registram taxas mais elevadas, respectivamente, de 242% ao ano e de 76% a.a., contra 65% ao ano no Brasil. Considerada a inflação, medida pelo comportamento dos índices de preços ao consumidor nos meses recentes, nenhum país nem sequer se aproxima dos 35% a.a. observados no Brasil.
Essa taxa corresponde a nada menos que 15 vezes a média das taxas reais de curto prazo dos sete principais países desenvolvidos, onde as taxas vão de um mínimo de 0,8% a.a. na Alemanha a um máximo de 4% na França.
Com juros reais de 22% a.a., a Argentina é o único outro país que apresenta taxas superiores a 20% em termos reais, reflexo da extraordinária pressão produzida pela perda de reservas cambiais e pela crise do sistema financeiro argentino.
Note-se que as taxas de juro acima referidas são as praticadas em operações de curto ou curtíssimo prazo, que constituem o piso ou estão próximas do piso do espectro de taxas de juro de mercado em cada país.
No caso do Brasil, a taxa corresponde ao ``overnight" efetivo, anualizado. Evidentemente, as taxas praticadas nas operações ativas do sistema bancário são muito mais elevadas, especialmente para as empresas menores e as pessoas físicas.
Como explicar que o Brasil esteja ostentando com tanta vantagem a condição de líder mundial da usura? Na verdade, não se trata de um fenômeno inteiramente novo. Há vários anos, o BC tem sustentado taxas de juro excepcionais, quase sem interrupção.
Esses níveis de juros têm sido atribuídos a uma combinação de fatores, entre os quais a chamada cunha tributária sobre as operações financeiras, o grau de concentração de um sistema bancário dominado por conglomerados financeiros de alcance nacional e a necessidade de refinanciar continuamente a dívida pública interna de curto ou curtíssimo prazo.
Desde a criação do real, entretanto, acrescentaram-se dois fatores novos. Primeiro, a preocupação do governo em conter, via juros altos e medidas de controle de crédito interno, o impulso fortemente expansivo detonado pela queda da inflação a partir de julho último. O que se procura com essas medidas é evitar que um excesso de demanda, particularmente de consumo, possa favorecer a retomada da inflação.
Segundo, a utilização dos juros internos como variável de proteção da ``âncora" cambial, ponto de apoio precário do Plano Real. Esse parece ser o aspecto mais fundamental.
A forte valorização real da moeda brasileira, de cerca de 30% desde julho, contribui poderosamente para abalar a competitividade das empresas brasileiras no exterior e no mercado interno.
O resultado tem sido a acumulação de déficits expressivos na balança comercial e ainda maiores no balanço de pagamentos em conta corrente (que inclui, além do comércio de bens, os juros da dívida externa, outros serviços, remessas de imigrantes etc.).
Mesmo que o governo ainda consiga equilibrar a balança comercial este ano, o déficit em conta corrente deverá alcançar algo como US$ 15 bilhões. Considerando as amortizações do principal, a necessidade bruta de capital externo será da ordem de US$ 26 bilhões.
Nessas circunstâncias, o BC é levado a operar com juros internos estratosféricos na ânsia de atrair o capital volátil ou de curto prazo necessário para fechar a brecha de balanço de pagamentos produzida pela valorização cambial.
O investidor estrangeiro, ainda não completamente refeito do susto provocado pelo colapso do peso mexicano em dezembro, percebe evidentemente o grande desalinhamento da taxa de câmbio brasileiro. Só taxas de juro realmente extraordinárias conseguem estimular o seu apetite por aplicações em reais.
Em outras palavras, as taxas de juro brasileiras incluem hoje um prêmio de risco apreciável, associado aos estragos produzidos nas contas externas pelo Plano Real.
Ademais, como o governo insiste em agarrar-se à ``âncora" cambial, o ajuste do déficit das contas externas passa a depender, em grande medida, de uma contração do nível de atividade. Essa última supõe, por sua vez, a manutenção da política de juros e crédito que vem sendo seguida no passado recente.
Como negar que haja algo fundamentalmente errado com uma política econômica que só se viabiliza com juros dessa magnitude? A política econômica brasileira está enredada em uma série de dilemas e impasses, que são, em grande parte, de sua própria criação.
Os juros altos, necessários para proteger a problemática âncora cambial, contribuem para reforçar a perda de competitividade das empresas brasileiras, especialmente daquelas que têm pouco ou nenhum acesso a crédito externo.
A situação ainda precária das contas públicas limita as possibilidades de o governo remover as distorções do sistema tributário, que, junto com o câmbio valorizado, os elevados custos financeiros e outros fatores, contribuem para prejudicar a competitividade internacional das empresas brasileiras.
A fragilidade do ajuste fiscal reforça a propensão do governo a insistir no uso do câmbio como elemento de sustentação do real. Mas os efeitos colaterais da ancoragem cambial acabam por desestabilizar a já insuficiente base fiscal do programa de combate à inflação.
A ninguém escapa o quanto é difícil enfrentar esses dilemas de política econômica. Reformas cambiais e monetárias do gênero do Plano Real costumam produzir armadilhas e irreversibilidades, como mostra a experiência de diversos países latino-americanos que enveredaram por esse caminho nos últimos anos.
Se quisermos evitar as desventuras que alguns dos nossos vizinhos estão enfrentando, é indispensável promover uma reorientação global da política econômica brasileira, que fortaleça as suas bases internas, especialmente no campo das finanças públicas, e permita libertá-la da perigosa dependência de juros altos, câmbio deprimido e capitais externos voláteis.

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