São Paulo, domingo, 4 de junho de 1995
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Retrato de um crítico

ANTONIO CANDIDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A crítica literária está hoje no Brasil para a literatura mais ou menos como o magistério secundário para as diferentes profissões. Assim como até há pouco os médicos, advogados, engenheiros e leigos que não sabiam o que fazer se dedicavam ao ensino nos ginásios, na literatura atual quem não reconhece em si mesmo nenhuma vocação específica se põe a fazer crítica de livros. E mesmo quem tem vocação determinada não deixa de vir dar o seu palpite. De modo que, embora extraordinariamente intensificada em número, a atividade crítica continua mais ou menos sem relevo especial. Raros são os bons críticos. Raríssimos os de primeira ordem. E mais raros ainda aqueles que se dedicam apenas à crítica.
Assim sendo, um nome como o do sr. Alvaro Lins avulta imediatamente dentre os seus confrades e vem a ser um verdadeiro exemplo de dedicação exclusiva à crítica literária, à qual ele se entrega como a uma missão. Os resultados, é claro, não se fazem esperar. Cada dia que passa o crítico pernambucano cresce em autoridade e em firmeza, e não sei se será exagero falar dele como da maior autoridade que possuímos em crítica literária hoje em dia.

A primeira coisa que se nota após a leitura desta segunda série do ``Jornal de Crítica" (1) é um progresso marcado e decisivo sobre a primeira, aparecida há coisa de ano e meio. O que vem provar que o sr. Alvaro Lins está longe de ser o prodigioso prodígio de maturidade precoce de que o querem fantasiar os seus críticos malavisados. Este progresso real, profundo, extremamente fecundo, demonstra a mocidade, a frescura permanente do seu espírito moço.
No meu modo de ver, tal progresso é devido sobretudo a um sentido mais filosófico da crítica e da obra criticada. À sua já conhecida intuição e perspicácia, o sr. Alvaro Lins junta nestes ensaios uma capacidade maior de relacionar, de estabelecer ligações em profundidade entre autor, obra, tempo, vida -que é justamente uma das características do espírito filosófico.
Talvez se pudesse dizer que o sr. Alvaro Lins, na primeira série do seu jornal se desenvolvia em julgador certeiro das obras, enquanto que hoje se apresenta como um descobridor do sentido das mesmas.

A faculdade mestra do sr. Alvaro Lins parece ser a de intuir e localizar... a faculdade mestra de uma obra e de um escritor. Num sentido, porém, ao mesmo tempo mais denso e mais vasto que o de um crítico taineano.
No sr. José Lins do Rego, por exemplo, o sr. Alvaro Lins apanha as duas molas do seu processo criador: memória e imaginação. Imediatamente, nos mostra como estas características se desdobram e dão origem ao mundo dos personagens do sr. José Lins do Rego, num movimento como que dialético de enriquecimento que se desdobra. Imaginação e memória se unem através da sua oposição; o autor que elas caracterizam se opõe ao mundo exterior e com ele se unifica através delas. O resultado é uma obra de extraordinária vitalidade e trepidação humana.
Este sentido de jogo da psicologia do autor com a sua estética, e delas com o meio, resultando de tudo o caráter significativo da obra, me parece a marca da crítica de ficção do sr. Alvaro Lins.
Aliás, creio poder dizer que ele é o maior crítico de ficção que já apareceu no Brasil. A crítica de ficção é a pedra de toque para se reconhecer o verdadeiro crítico, aquele que funde sensibilidade com poder de analisar. É a mais complexa e a mais delicada.
Na poesia, o crítico pode se deixar levar pela comunicação afetiva e, sugerindo apenas este movimento de participação, colocar-se fora da análise. Na crítica de idéias, pode ser que demonstre apenas esta. Na de ficção, é preciso que se combinem ambas, pela própria natureza do gênero criticado. De acordo com a maneira por que penetra num romance, sentindo-o, analisando-o, revelando-o, situando-o, conhece-se a universalidade e a profundidade de um espírito crítico. Grande crítico de ficção, o sr. Alvaro Lins me parece menos feliz na de poesia, onde a intervenção da sua inteligência se dá um pouco de mais, onde ele como que abafa as forças de participação que se sente existirem nele. Na de idéias, onde caminha com menos segurança, creio que chegará a uma grande firmeza, quando estiver de posse do seu método.

Porque o sr. Alvaro Lins ainda não possue um método. Apenas se encaminha para ele.
A característica mais geral do crítico do ``Correio da Manhã" é o seu individualismo. A sua consciência que, como a do artista, não quer se comprometer para não se limitar. Tal atitude, que me parece condenável, e que leva os críticos menores ao desbragamento personalista e a um infra-relativismo em que se dissolve de todo a inteligência ordenadora -aparece, no entanto, em críticos da sua estatura, como propícia a inúmeras vantagens.
Antes de mais nada, porque há na sua isenção uma virtude superior de imparcialidade; depois, porque vem de ambas um caráter fecundo de universalidade; finalmente, porque, de posse destas duas qualidades que podiam ser defeitos e descair na falta de caráter intelectual, o sr. Alvaro Lins as articula e organiza segundo uma solidíssima linha ética de pensamento e de conduta.
Ora, o resultado é que tal crítico, fazendo embora da sua atividade uma aventura sempre renovada em face das obras, mantém o rigor de uma diretriz, graças à firmeza de um princípio de moral intelectual toda voltada para o conhecimento literário, e só para ele.
Não há dúvida que o sr. Alvaro Lins é, quimicamente falando, o crítico mais puro que existe hoje em dia no Brasil. Há certos momentos em que quase nos comovemos ante algumas das suas páginas, ao sentirmos a nobre tensão em que vive o seu espírito, defendendo ciosamente o justo equilíbrio e a imparcialidade, entre o impressionismo estético que ameaça os grandes individualistas e a solicitação da atividade no mundo, que arrasta o intelectual para o turbilhão dos acontecimentos e das paixões políticas.
Tanto mais quanto não é difícil notar no sr. Alvaro Lins um interesse apaixonado pelo seu tempo e pelo seu semelhante -interesse que ele não permite, mais ainda neste segundo ``Jornal" que no primeiro, ameace seriamente a sua equanimidade. Sob a serenidade contida deste crítico sente-se um drama: sente-se um homem que vive compondo a cada momento a sua posição em face do mundo, num esforço permanente de compreensão. Esta luta interior, esta agonia como diria o velho Unamuno, dá às páginas de crítica do sr. Alvaro Lins um valor humano e espiritual que lhe assegura a prioridade sobre quantas se publicam entre nós.
Para os moços que escrevem e que, talvez por menos fortaleza de ânimo, ou uma crença menos total na literatura, não conseguem desligar o seu trabalho de um tempo que os solicita vertiginosamente, e onde eles se inscrevem com a fatalidade da queda dos graves, para os moços de agora, dizia, o sr. Alvaro Lins constitui motivo de inspiração e de conforto.
É que eles o sentem, de um modo ou de outro, como alguém que há de manter sempre puro o trabalho crítico; que há de se dirigir sempre à literatura com a intenção de cuidar dela, e só dela, sem deixá-la, pobre ancila, se desfigurar no tumulto violento para o qual nos encaminhamos cada vez mais. Sentem, por outro lado, que no meio da horda dos impressionistas desumanos e anti-sociais, há um individualista consciente que, em que pese as solicitações do meio, prestará à literatura brasileira o serviço de lhe indicar o caminho certo, preservando-a do partidarismo e da utilização indevida.

Vejamos as razões que me levaram a dizer que o sr. Alvaro Lins está se encaminhando para o seu método.
Para ele, o objeto da crítica -declarado no ensaio que abre o livro e reafirmado mais de uma vez nos outros- é a determinação, na obra literária, daquilo que é eterno, que transcende às contingências. O sr. Alvaro Lins está certo ao pensar deste modo. A literatura, como a arte, tem razão de ser na medida em que significa uma fixação de certos elementos que vençam o tempo e se coloquem acima da sua relatividade. Pensando assim o seu método é consequentemente o de uma penetração de essências, o trabalho crítico se perfazendo com a revelação do núcleo absolutamente significativo de uma obra, a crítica se tornando uma aventura da personalidade, um esforço para inserir na mesma ordem de que participa a essência da obra literária.
No entanto, por mais completa que possa ser a participação de um crítico no núcleo essencial de uma obra, é fora de dúvida que só há um meio para se chegar a ele: os seus sinais exteriores; toda aquela parte que significa neles ligação com o tempo, contingência, relatividade. É o próprio sr. Alvaro que o reconhece a um dado momento.
Ora, se supusermos que há de fato alguma coisa de eterno no homem, que empresta duração à obra de arte, refletindo-se nela, é fora de dúvida que essa alguma coisa se apresenta de um modo ou de outro conforme o tempo e o lugar. Fosse de fato possível a existência por si de uma realidade humana extratemporal, poder-se-ia dizer, caricaturando, que a primeira obra-prima da literatura a teria esgotado. E não haveria lugar para nenhuma outra mais. Pelo fato daquilo que o sr. Alvaro Lins chama de efêmero, de temporal, de contingente, constituir de fato o aspecto significativo das obras, é que é possível haver uma cadeia ininterrupta de grandes obras através da história da cultura.
Assim, não se justifica uma das afirmações-chaves do sr. Alvaro Lins: ``...tenho a coragem de ser indiferente ao que é moderno e ao que é antigo, procurando somente a verdade -o que me parece a verdade, pelo menos- sem ligação com as circunstâncias de espaço e de tempo" (op. cit., pág. 22).
Ora, as circunstâncias de espaço e de tempo são grandemente responsáveis pelo fato de Dostoiévski não tratar o eterno humano da mesma maneira por que o fizeram Cervantes, ou Villon. Através delas, portanto, é que podemos chegar ao núcleo de significação de uma obra, pois que são elas que definem a verdade que o sr. Alvaro Lins quer colocar fora e acima delas. De maneira alguma será possível ao crítico deixar de começar por elas o seu trabalho. Nem quando imagina estar entrando em comunhão mística com as essências, pois ainda neste caso nada mais fará do que intuir diretamente uma realidade que não passa da hipóstase de tempo e de espaço.
O método do sr. Alvaro Lins, na sua primeira fase, parecia mais radicalmente individualista e essencialista. Ou, antes, a sua falta de método. Nesta segunda fase, em que lhe pese, ele se aproxima muito mais da consideração do aspecto cultural da criação literária. É o que me leva a crer que, num futuro não remoto, o seu método surgirá, tendo como característica uma síntese feliz do seu essencialismo, personalista e da valorização justa do condicionamento cultural das obras.
Como se vê, a sua carreira vem se desenvolvendo num progresso contínuo para o aprofundamento e, através do processo que mencionei no princípio da correlação em profundidade, para um largo e definitivo universalismo crítico.

NOTA
(1) Alvaro Lins - "Jornal de Crítica - 2ª série, Livraria José Olympio Editora, Rio, 1943

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