São Paulo, domingo, 4 de junho de 1995
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Um libertário da linguagem

Romances de Campos de Carvalho são reeditados

JOSÉ GERALDO COUTO
DA REPORTAGEM LOCAL

Entre 1956 e 1964, o escritor Campos de Carvalho, 78, escreveu quatro romances sui generis e depois se calou, como se dissesse aos leitores: abri janelas para um mundo novo, agora é com vocês.
Esses quatro romances estão sendo relançados agora num único volume pela editora José Olympio. É uma das grandes notícias editoriais do ano.
São quatro livros diferentes entre si no tema e na estrutura, mas que têm em comum uma espantosa liberdade de imaginação, além do fato de serem narrados todos em primeira pessoa.
Acrescente-se a isso o mesmo alvo -a ``normalidade" dos costumes, das idéias, da linguagem- e as mesmas armas para atingi-lo: o humor e a invenção.
A narração em primeira pessoa, aliás, não é um acidente ou uma mera opção estilística: é a única possível numa literatura que desconfia das aparências do mundo e aposta na capacidade da invenção humana para modificar o real.
Em ``A Lua Vem da Ásia", de 1956, um esquizofrênico internado num hospício conta suas experiências presentes e passadas, reais e imaginárias -sem distinguir umas das outras, ou pelo menos dando-lhes um peso equivalente de ``realidade".
A situação psíquica do protagonista permite-lhe sobrepor suas falsas memórias (ou memórias virtuais) umas sobre as outras, numa profusão de histórias absurdas desdobradas numa geografia exótica e imaginária: ele foi coveiro em Cochabamba, agente secreto nas ilhas Malvinas, traficante de drogas em Coimbra, atravessou a nado o estreito de Gibraltar (``que não me pareceu tão estreito quanto dizem") etc., etc., etc.
Se o moto central desse delirante romance é a subversão da dita normalidade mental -não por acaso, tudo começa quando o narrador assassina seu professor de lógica-, os pontos altos do livro são as passagens em que essa subversão se incorpora à própria linguagem, no desnudamento das frases feitas, no desmonte das construções inerciais da língua.
Os (raros) pontos baixos são os momentos em que o discurso libertário se torna demasiado explícito e programático, ocasiões em que se serve de uma linguagem mais ``funcional" e perde sua força desbravadora.
É significativo que, aqui e ali, o autor pareça dar-se conta desse risco e eluda-o da melhor maneira possível: incorporando-o e criticando-o no próprio texto.
Um exemplo (à pág. 127): ``E que são as fronteiras de uma cidade, eu pergunto, senão os limites estreitos de uma moldura mais ou menos de luxo na qual pretendem sufocar a imensidão de minha alma imortal, como diria um grande poeta ou qualquer seminarista em férias, em tarde de primavera?"
A ironia de ``seminarista em férias" contrabalança e anula o empolamento da ``imensidão de minha alma imortal".
Passagens como essa fazem lembrar a aguda consciência literária e revolucionária de um Cortázar, por exemplo, que em ``O Fascínio das Palavras" (editado pela própria José Olympio) afirma: ``É absurdo pretender mudar qualquer forma da realidade se continuarmos utilizando as ferramentas podres e gastas e mentirosas de um idioma que vem carregado de toda a negatividade do passado".
O melhor de Campos de Carvalho é justamente essa consciência libertária transformada em prática literária -e nos seus três romances seguintes isso é ainda mais evidente (leia ao lado algumas frases exemplares).
Em ``Vaca de Nariz Sutil" (1961) e ``A Chuva Imóvel" (1963) é possível notar uma tendência em direção a uma maior densidade dramática e poética. A introspecção se acentua, a linguagem se torna mais reflexiva e menos narrativa.
No primeiro dos dois, o narrador -um ex-soldado que vive da pensão que recebe como herói de guerra, embora odeie a guerra- pratica um voyeurismo sistemático na pensão onde mora, até que vive um amor insólito, num cemitério, com a filha aparentemente retardada do coveiro.
Há passagens de um lirismo estranho, oblíquo e arrebatador, que não raro faz lembrar Clarice Lispector. Um exemplo (pág. 185): ``Valquíria olha as sepulturas como quem olhasse uma plantação (...). Esse mar e essa plantação, eis todo o seu mundo desde sempre: à sua margem cresceu, cresceram-lhe os seios, aprendeu a caminhar sobre os mortos como sobre as ondas, cada árvore trazia as raízes fincadas no mistério".
Ainda em ``A Vaca de Nariz Sutil", a par da presença quase sufocante do sexo, surge uma imagem recorrente que será retomada no livro seguinte, ``Chuva Imóvel": o umbigo, como signo de origem e identidade, amarra do homem à natureza e ao cosmo.
Mas, se em ``A Vaca de Nariz Sutil" há um equilíbrio entre uma certa amargura (``tudo é inútil", repete como um refrão o narrador) e o humor anárquico, em ``Chuva Imóvel" o humor se rarefez numa atmosfera pesada e quase sem esperança.
O narrador-protagonista é, como nos livros anteriores, um ``outsider" irremediável, mas aqui seu estigma é mais pungente: sua identidade não é a do louco ou do anarquista, mas a do incestuoso. Ele ama a irmã gêmea, que na verdade é uma espécie de duplo feminino seu -chega a se referir aos dois como uma entidade única, André/Andrea.
O próprio autor parece ter-se espantado com o pessimismo de ``Chuva Imóvel", ao ponto de fazer um giro de 180 graus (olha aí a frase feita, traiçoeira) em seu livro seguinte, ``O Púcaro Búlgaro".
Aqui, a partir da história de um homem que decide descobrir se a Bulgária existe de fato ou não passa de um mito, entramos no terreno do puro ``nonsense", da alegria de inventar novos mundos e linguagens, de dinamitar os discursos prontos, as atitudes automáticas, a rotina do pensamento e da ação.
Ler ``O Púcaro Búlgaro" é deixar-se levar por uma vertigem poético-humorística análoga à de um filme dos Irmãos Marx. Com a vantagem de que aqui não há cantorias chatas e cenas melosas de amor entre as piadas.

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