São Paulo, domingo, 4 de junho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"É preciso repensar as formas do desejo"

MIRIAM CHNAIDERMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

O desejo não existe sem a proibição dele, é sempre transgressivo. Por isso ele é interessante, está sempre criando ordens novas, mundos novos. A lei faz parte do desejo. Para o desejo existir, tem que estar transgredindo.(...)
Se o desejo são formas que a subjetividade vai ganhando através dos tempos, ele não precisa necessariamente ser pensado como ligado à culpa e à transgressão. Pensado como movimento, como fluxo, como formas de semiotização -como dele falam Deleuze e Guattari-, tudo isso pode ser repensado.
Agora, em Freud, que tem um grande mito que está no texto "Totem e Tabu, o mito da horda primitiva, do assassinato do pai totêmico e da culpa pelo assassinato do grande pai etc., o desejo está ligado ao Édipo, ao que ele nomeou como sendo o complexo de Édipo e a culpa. Ou seja, todo o desejo no ser humano estaria relacionado à culpa ligada a relações muito primitivas que toda criança teria com seus pais e carregaria para o resto da vida. (...)
Não só a Igreja, mas a psicanálise também, numa certa leitura, tem muito a ver com a culpa no mundo contemporâneo. Há uma certa leitura de Freud e de Lacan na qual a culpa adquire um lugar nuclear. E, então, ser analisado é viver a culpa até as últimas consequências. Eu não penso desse jeito, não é a minha posição. A grande questão contemporânea é poder viver o desejo nas múltiplas e infinitas caras que ele tem. O núcleo do desejo não é a culpa, mas há uma certa psicanálise que privilegia também a culpa, tanto quanto a Igreja. (...)
A noção de culpa está ligada à instauração da ordem jurídica. A tragédia grega é o exemplo mais grandioso e magnífico dessa transição de uma ordem religiosa para uma ordem jurídica, com todos os conflitos que isso implicava. Antes, havia os rituais, as trocas entre os deuses e os homens, acordos possíveis, negócios. Com a ordem jurídica, passa a existir a dívida com a pólis, a culpa, a punição pela infração.
Essa é uma das questões com as quais a psicanálise pôde contribuir, mostrando que qualquer objeto pode ser objeto do desejo e que perversão é um conceito jurídico e não tem nada a ver com o desejo. A culpa não é inerente ao humano, mas advém das formas de controle social, de subjetivação, de coerção social. (...)
O que a gente vive no mundo contemporâneo, no mundo do computador, no mundo do out-door, no mundo da grande aldeia, talvez seja também um jeito de se reconectar com a terra, só que de um outro jeito, ou num outro código, ou num outro registro. Esse saudosismo, essa nostalgia me causam um certo espanto. Saudade da terra, da chuva, do vento. É tão bom ter a Internet, é tão bom poder levar um vídeo para a casa. É preciso repensar as formas do desejo hoje em dia. (...)
Eu teria muita dificuldade em falar qual é o desejo do Brasil, porque o desejo não é uno, é sempre múltiplo. Eu poderia falar obviedades, como o desejo da liberdade, de que todo mundo possa viver bem, de ter casa. Mas é mais complexo do que isso. O Brasil é o país da multiplicidade, há muitos brasis no Brasil. Talvez a questão seja: como respeitar a heterogeneidade, esses muitos brasis e estes múltiplos desejos que, apesar da multiplicidade, fazem com que todos nós nos sintamos brasileiros. (...)
Eu não acredito numa essência de desejo de classe dominante ou de burguesia. Os desejos são produzidos num certo contexto e, no contexto atual, quem ganha acima de um certo "x está podendo, quer, faz parte do ser bem, estar bem, pode comprar o carro importado. A questão não é o carro importado ou o não carro importado, mas uma transformação mais ampla onde, é claro, haveria espaço para a multiplicidade dos desejos, não só do uísque, do carro importado, mas das várias formas de amor, das várias formas de vida. A questão não é o desejo do carro importado, mas é o que produz o desejo do carro importado. (...)
O racismo existe no Brasil, só que de forma camuflada. Há miscigenação, aceitação de várias religiões, mas tudo muito brigado, lutado. Há um longo caminho a percorrer no reconhecimento das diferenças e eu não sei o quanto as elites se dão conta disso. Porque sempre que há o poder, há o disfarce da diferença, a camuflagem. E é no assumir das diferenças que se pode lidar com elas.

Texto Anterior: "Queremos voltar à terra, pisar o chão"
Próximo Texto: A encarnação do desejo
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.