São Paulo, domingo, 4 de junho de 1995
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Um peso-pesado da crítica literária

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Professor, jornalista, biógrafo, político, embaixador, acadêmico -o pernambucano Alvaro Lins (1911-1970) foi tudo isso, mas os poucos que ainda se lembram dele o consideram, antes de mais nada, um crítico literário. Um dos maiores que já tivemos. E, certamente, o mais importante e influente dos anos 40 e 50.
Herdeiro do rodapé literário do "Correio da Manhã, antes ocupado por Humberto de Campos, beneficiou-se ainda da veiculação de suas colunas por mais cinco jornais editados fora do Rio, três no Nordeste e dois em São Paulo, um dos quais esta Folha. Tão amplo alcance lhe valeu alguns epítetos -"regente da literatura, "imperador da crítica brasileira, "mestre supremo das letras nacionais- não de todo hiperbólicos.
Um crítico nato. Assim o julgava Otto Maria Carpeaux, seu sucessor no "Correio da Manhã. Alceu Amoroso Lima e outros colegas de ofício compartilhavam da mesma opinião, corrente também do outro lado da trincheira. Guimarães Rosa chegou a equipará-lo ao campeão mundial de boxe Joe Louis. Sua erudição não se rebaixava a exibicionismos, nem seu poder atiçava arrogância. Escrevia com elegância e absoluta clareza, como aliás convém aos verdadeiros espíritos iluministas.
Sua formação católica o levou a fazer da atividade crítica um apostolado. Acreditava, piamente, que a missão do crítico -a seu ver, "um leitor que aperfeiçoou o senso crítico pelo gosto e pelos estudos- era ensinar os outros, menos dotados, a ler. Nisso foi fiel a seu principal mestre, Sainte-Beuve, que talvez tenha sido o primeiro a sugerir, com outras palavras, que a crítica é o magistério da literatura. Foi também com o mestre francês que aprendeu que a crítica possui uma dimensão criadora, a ser incentivada e incansavelmente exigida.
Pessoalmente, Lins se dizia "um político no mundo das letras, não porque exigisse delas enquadramentos ideológicos, mas porque se sentia um político deslocado na seara literária. Nenhum tipo de sectarismo o seduzia. "Não me conformo que a obra de arte seja qualquer coisa além de uma obra de arte. Não me conformo que seja um instrumento de doutrina e de propaganda, nem mesmo a serviço da Igreja. Não sabia que traição maior ameaçava a literatura e a obra de arte em geral, se os grilhões do engajamento ou a indiferença da torre de marfim.
Tampouco se rendia a modismos. "Tenho a coragem de ser indiferente ao que é moderno e ao que é antigo, procurando somente a verdade -o que me parece a verdade, pelo menos- sem ligação com as circunstâncias de espaço e de tempo.
Às teorias prontas, que, para ele, correm o risco de limitar e escravizar a crítica, preferia o franco impressionismo de leitores confiáveis, porque inteligentes, cultos, sensíveis, honestos, corajosos e independentes. Daí sua predileção por Sainte-Beuve, cujos erros, segundo ele, "foram menos graves e mais compreensíveis do que os de Taine e Brunetière, já que o primeiro "errou por sentimentos de fanatismo pessoal e os outros dois "por motivos de fanatismo científico.
Em seu ótimo ensaio sobre "A Obra Crítica de Alvaro Lins e Sua Função Histórica (Vozes, 1979), Adélia Bezerra de Meneses Bolle levanta a suspeita de que, ao contrário das aparências, a reação inicial de Lins à crítica dita científica poderia até identificá-lo como um progressista, na medida em que se contrapunha "ao exagero determinista da influência taineana, com muitos adeptos no Brasil daquela época. Já o mesmo não pode ser dito de sua reação ao "new criticism, contra o qual, a despeito de sua admiração por T.S. Eliot, mentor daquela corrente vanguardista, investiu com furiosa veemência.
Comprou, com isso, uma de suas brigas mais memoráveis. Do outro lado do ringue, Afranio Coutinho, apóstolo (ou "representante indígena, conforme dizia Lins) do "new criticism. O crítico baiano não resistiu a uma baixaria, xingando Lins de "criticastro, "caso de polícia e hospício, "farsante, "intrujão e "cáctus de Caruaru.
Com o passar dos anos, Lins foi aceitando a mirada de alguns críticos mais, digamos, modernos, chegando mesmo a referir-se a Spitzer, Auerbach e Koskimies em seus últimos escritos. Ou seja, Lins ficou mais formalista. Nem por isso mais ou menos justo nas suas apreciações. A rigor, errou pouco. Menos até, quem sabe, do que seus mestres mais evidentes (além de Sainte-Beuve, foi discípulo confesso de Anatole France, José Verissimo, Gilberto Freyre e Alceu Amoroso Lima, que o iniciou na filosofia de Jacques Maritain, Henri Bergson e Benedetto Croce).
Acertou em cheio com Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Dionélio Machado e Erico Verissimo. Apostou certo nas revelações de Guimarães Rosa, Clarice Lispector, João Cabral de Mello Neto, Dalton Trevisan e Murilo Rubião. Quando reconhecia haver cometido uma injustiça, apressava-se em corrigi-la. Fez isso com Jorge de Lima, por ele desdenhado em 1941 e louvado em 1947, ainda que pelas obras erradas.
Também submeteu Augusto Frederico Schmidt a uma revisão, só que no sentido inverso. Saudado, a princípio, como "um dos maiores poetas líricos do país, tão importante quando Bandeira, Schmidt acabou alguns degraus abaixo na escala de Lins.
Católico radical (ou "cético, na definição mais precisa de Freyre), Lins amadureceu numa época em que setores da intelectualidade católica (Bernanos, Maritain, Mounier) se articulavam numa frente política contra o avanço do comunismo, mas a favor de mudanças sociais drásticas, sem derramamento de sangue.
Como tantos outros do seu rebanho, entusiasmou-se por uns tempos com as falsas promessas do integralismo. Ainda era jovem (21 anos), mal chegado de Caruaru, e já pensava de maneira diferente quando, após liderar a Ação Católica de Recife e formar-se em direito, tornou-se secretário do governo de Carlos de Lima Cavalcanti.
Com a queda do governador, vítima do Estado Novo, Lins, que àquela altura já se notabilizara como crítico literário de três jornais de Recife, fugiu para o Rio, onde, com a ajuda de Freyre, entrou para o "Correio da Manhã. Começaria ali sua vertiginosa ascensão, como crítico, editorialista e político. Seus editoriais denunciando o golpe armado contra a posse de Juscelino Kubitschek lhe renderam um apelido ("ministro do `Correio da Manhã' ) e a chefia da Casa Civil do novo governo, com o qual, no entanto, romperia relações, três anos mais tarde, por causa de um grave incidente diplomático.
Depois de chefiar a Casa Civil, Lins foi chefiar nossa embaixada em Portugal. Tudo ia bem até o dia em que ele concedeu asilo político ao general Humberto Delgado, ex-candidato à Presidência da República e líder da oposição à ditadura salazarista, que o ameaçara de morte. Pressionado pelo governo português, JK vacilou na concessão do asilo. Irritado, Lins demitiu-se de suas funções, retornou ao Brasil, e nunca mais falou com o presidente.
O "Caso Delgado, recapitulado no livro "Missão em Portugal, mexeu muito com a cabeça dele. O Alvaro Lins que os três primeiros anos da década de 60 presenciam não é mais o "imperador da crítica, mas o agitador político, à frente de entidades nacionais e internacionais de apoio a exilados e vítimas de regimes autoritários. Depois, radicalizou, participando da "Revolta dos Marinheiros, episódio decisivo para a eclosão do golpe de 64.
O novo regime aumentou ainda mais o seu desinteresse pela literatura e a sua tendência à depressão, "acabrunhadora e quase catastrófica, segundo um diagnóstico de Guimarães Rosa, em 1953. Arrasado com os novos rumos tomados pelo país, em vez de ir para Caruaru, "plantar melancia na vazante, como vivia ameaçando nos tumultuados idos de Lisboa, Lins permaneceu no Rio, afastando-se de tudo e todos. Parou de escrever, de publicar livros, emudeceu. E assim ficou até que, de crise em crise, seu coração explodiu a 5 de junho de 1970.
Desde então, nenhuma de suas obras foi reeditada. Apesar do interesse que o seu legado crítico despertou em Adélia Bolle e no pernambucano Antonio Brasil, que há dez anos publicou um estudo a seu respeito pela José Olympio, sobre o mestre de Caruaru baixou o mais pífio silêncio.
Ainda é possível encontrar em sebos "Missão em Portugal, "Os Mortos de Sobrecasaca, e, com mais sorte, o último volume do seu "Jornal de Crítica, o sétimo de uma série iniciada em 1941. Todos mereciam uma reedição, sobretudo a "História Literária de Eça de Queiroz e a tese sobre Proust que lhe assegurou a cátedra de literatura do Colégio Pedro 2º. Não destaco a biografia do barão do Rio Branco -que Wilson Martins considera um dos dez livros brasileiros fundamentais- porque esta, felizmente, está sendo reeditada sob o patrocínio do Itamaraty.

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