São Paulo, segunda-feira, 5 de junho de 1995
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Os dois Darcys

CARLOS GUILHERME MOTA

O Povo Brasileiro - Formação e Sentido do Brasil
Darcy Ribeiro Companhia das Letras, 472 págs. R$ 22,00

``Ninguém pode se libertar duma só vez das teorias-avós que bebeu"
Mário de AndradeS egundo Darcy Ribeiro, ``O Povo Brasileiro" constitui o maior desafio de sua intensa vida. Talvez seja mesmo. Poucos escritores de seu grupo-geração representam como Darcy o que se entende por cultura brasileira, com tudo o que carrega de crítico e empenhado, mas também de ambíguo. De autoproclamado populista. Sua obra desafia o leitor preocupado com a história dos sistemas culturais e ideológicos que ora libertam ora aprisionam a própria idéia de Brasil.
Observador das civilizações, o antropólogo modula a velha questão: como se formou o povo brasileiro? E, de antropólogo, Darcy passa a herói-civilizador: como ``ajudar o Brasil a encontrar-se a si mesmo"?
Em suas páginas, regressamos ao restrito patamar da alta historiografia e das ciências humanas no Brasil. Num diálogo ansioso com Capistrano, Sérgio Buarque (v. o cap. ``Aventura e Rotina"), Gilberto Freyre, José Honório Rodrigues (penso em ``Teoria da História do Brasil" e ``Aspirações Nacionais"), com Caio Prado, Darcy se esforça para inserir sua obra de antropólogo naquele panteão dos ``explicadores do Brasil". Só o tempo dirá, como sempre, se ficará na ala dos críticos da cultura ou na dos ideólogos.
``O Povo Brasileiro" fecha um ciclo de reflexões sobre os brasileiros e o que somos, iniciado com ``Teoria do Brasil" (1ª edição em 1969), seu livro mais estimulante. Procura se alinhar com ``Raízes do Brasil", de Buarque, com as obras de formação do patriarcalismo brasileiro de Freyre e de formação do Brasil contemporâneo de Caio. Mas também com as ``formações" de seus contemporâneos Candido, Faoro, Furtado e outros... Não por acaso o subtítulo do livro é ``Formação e Sentido do Brasil". Nessa procura obsessiva dos traços essenciais de ``nossa formação", que remonta a Nabuco e Euclides, e trabalhando com as noções de nação, elite, ``povo-nação" e ``destino nacional", Darcy faz de ``nossa etnia" a sua ideologia: ``Os brasileiros se integram em uma única etnia nacional, constituindo assim um só povo incorporado em uma nação unificada, num Estado uni-étnico" (pág. 22). Ponto.
Não se trata aqui de acompanhar, em perspectiva bio-bibliográfica, as vicissitudes e as contradições, os altos e baixos de vida intelectual tão intensa e copiosa. O que é teorização sua ou de toda uma constelação que, no Brasil vai de Honório a San Tiago Dantas, e no resto da América Latina de Zea ao peruano Carlos Delgado? Poderíamos descobrir que sua generosidade indignada, capistrânica com o sofrido ``povo brasileiro" nem sempre foi acompanhada de ação pacienciosa, de longa duração e de enraizamento institucional, no sentido de formar novos quadros críticos.
Por que as ações e propostas permanentemente fabricadas pelo antropólogo-taumaturgo não vingaram no solo ingrato de nossa chamada cultura brasileira? Será porque ``cada vez que um político nacionalista ou populista se encaminha para a revisão da institucionalidade as classes dominantes apelam para a repressão e a força"? O fato é que a vida de Darcy por vezes avança, por vezes retrocede em relação a sua obra. E não esqueçamos ter sido ele um dos responsáveis pelo histórico Programa de Reformas de Base antes de 64, e ter sido dos poucos que resistiram concretamente aos golpistas civis e militares, até o último minuto.
Num país com tantos problemas de identidade cultural, social e até monetária, de ``imagem externa" e interna, uma das chaves do sucesso é trabalhar com o velho tema da identidade nacional. Nesta fase em que Darcy assiste a verdadeira consagração em vida, mercê de suas formulações generosas sobre o povo brasileiro, que é ótimo mas ainda não encontrou -afirma- seu ``espaço", uma visita a algumas de suas teses permitirá talvez fixar melhor o sentido de sua obra. E seus conceitos de cultura brasileira e de identidade cultural.
É difícil perceber o quanto Darcy absorveu da variada crítica revisionista nas ciências sociais nos anos 60/70, desde Stavenhagen e Marini. Somente um estudo mais acurado de seus textos permitirá entender como captou o colapso do populismo nos anos 60 e 70, ou o fortalecimento de modelos autocrático-burgueses de exploração em nossos países.
Em seu novo livro, ele retoma, reelabora e eventualmente desradicaliza algumas de suas teses anteriores. Mas permanece a interessante tipologia histórico-cultural que formulara para uma possível classificação das civilizações em geral (povos-testemunhos; novos; transplantados; e emergentes). Faltava um trabalho específico sobre a formação -digamos- sócio-étnico-cultural da população brasileira, que aparece agora.
Dividido em quatro partes (``O Novo Mundo", ``Gestação Étnica", ``Processo Sociocultural", ``Os Brasis na História"), o livro indica o processo de encontro étnico que, na colônia, ``deu nascimento aos núcleos originais que, multiplicados, vieram a formar o povo brasileiro". A discussão sobre o processo civilizatório a partir da análise das matrizes étnicas desemboca numa curiosa tipologia étnico-cultural da população, digamos, ``brasileira", na parte da ``Gestação Étnica". Nas outras partes, acompanha processos de diversificação populacional que marcaram as regiões, ``os nossos modos regionais de ser". E finalmente localiza os vários Brasis (crioulo, caboclo, caipira etc), em visão despojada e polêmica, mas com crítica aos regimes fundiário e de trabalho.
Que quer o Darcy teórico? Quer demonstrar que nenhum povo vive sem uma teoria de si próprio. Para além de Freyre e Buarque, que critica, e de Florestan, que incorpora, o impaciente Darcy não procura elaborar propriamente uma história. Em segundo lugar, quer reforçar a tese -nacionalista retroativa- que desde cedo já se formara aqui uma ``protocélula étnica neobrasileira, diferenciada tanto da portuguesa quanto da indígena". É a precocidade dessa matriz étnica embrionária e sua sobrevivência por quatro séculos, essa unidade essencial, que o atrai. Dessa unidade é que parte para analisar as variantes principais do que denomina ``cultura brasileira tradicional": a cultura rústica, camponesa, cabocla etc. No processo de fusão de matrizes tão diferenciadas é que se define ``nossa neo-romanidade", como nova Roma tardia e tropical...
Darcy quer ainda que, unificados, nos unifiquemos uma vez mais com os latino-americanos. Contra quem? Contra a América anglo-saxônica, para fundarmos, tal como ocorre na comunidade européia, a Nação Latino-Americana sonhada por Bolívar. Aqui, com a ``etnia brasileira" se fortalecendo, aglomerados de gentes despojadas de identidade, desindianizadas, desafricanizadas ``se vêem condenados a inventar uma etnicidade englobadora de todos eles". Plasma-se a nova etnia e se promove sua integração na forma de um Estado-Nação.
Faltou a Darcy mostrar que já neste século o Estado oligárquico necessitou fabricar ideologias culturais que trouxeram o “povo”e a “cultura brasileira” para seu controle. E encontrou agentes do Estado disposto a fazê-lo.
Curiosa dualidade, a sua. Um Darcy gilbertiano observa que não houve nesse processo de identificação a formação de grupos separatistas ou tendência a guetos e quistos, o que favorece a “integração”. Mas avulta por outro lado, o Darcy, por assim dizer, “marxista”, notando que antagonismo e desgarramentos de grupos opostos são provocados pela estratificação de classes. Ao longo da história, diz este, uma estratificação classista de “nítido colorido racial e do tipo mais cruamente desigualitário que se possa conceber”. Correto. Deixando de lado a existência de poderoso sistema ideológico-cultural, que parece não ver, caracterizado por pesada blindagem que elimina a dissidência desde a formação do Estado nacional, o outro Darcy mostra, iracundo, que nossa democracia racial é falsa, que nossas elites raramente perceberam os abismos que separam os estratos sociais. E aqui se impõe este outro bom Darcy: “o mais grave é que esse abismo não conduz a conflitos tendentes a transpô-lo, porque se cristalizam num modus vivendi que aparta os ricos dos pobres como se fossem castas e guetos”.
Finalmente, seu conceito de cultura brasileira. Creio que apareceu melhor elaborado em “Teoria do Brasil" (1978), época em que estava voltado para a questão das relações das vanguardas com o povo, com a revolução necessária. E, no plano da crítica cultural, com a consciência culposa e reacionária, como a de Gilberto Freyre (o exemplo é seu). Agora, Darcy faz um balanço e vê que seu querido “povo brasileiro” não conseguiu ainda reverter a História, contra a violência da classe dominante.
Apesar de tanta luta, teria faltado aos movimentos sociais “espaço” para promover a reversão. “Faltou sempre, e falta ainda, clamorosamente, uma clara compreensão da história vivida, como necessária nas condições em que ocorreu e um claro projeto alternativo de ordenação social, lucidamente formulado, que seja apoiado e adotado como seu pelas grandes maiorias." Projeto, propõe Darcy, a ser tocado por um político nacionalista e populista formulado por alguém lúcido e adotado como seu pelas massas. Mas não é esse o movimento inverso ao da História contemporânea em que as bases elaboram seus projetos e definem -elas definem - suas lideranças e representantes?

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