São Paulo, segunda-feira, 5 de junho de 1995
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Identidade perdida

FLORESTAN FERNANDES

O governo federal possui ministros, técnicos e funcionários de segundo escalão que nas décadas de 1960 e 70 se tornaram visíveis e notórios por posições que ocupavam na esquerda. Entre eles, alguns foram progressistas e nacionalistas. Mas também havia os reformistas radicais e revolucionários. A cisão ocorrida no PMDB, quando da fundação do PSDB, arrastou vários deles, que optaram por uma maior liberdade de ação política e coerência partidária.
Enquanto partido social democrático, o novo agrupamento visava injetar na sociedade brasileira uma mentalidade política mais moderna. A ordem estabelecida deixava de ser fator de resistência à mudança social. Esta podia ser vista como um espaço histórico amplo, tão favorável a inovações e reformas que o capitalismo nativo impedia, quanto aberto a eventuais transformações profundas e a processos de ruptura inevitáveis, exigidos pela aceleração do desenvolvimento e pelo desencadeamento de uma democracia participativa.
Apesar dessa gama de possibilidades, o PSDB não recrutou seletivamente os membros fundadores e os candidatos à adesão formal. Ao crescer, o novo foi contaminado pelo tradicional. Acostumada a decidir e mandar, a burguesia sempre se sentiu atraída pelo ``social" e pelo ``democrático", embora suas atitudes e comportamentos negassem tal ilusionismo político. Constituído por setores da média e alta burguesia, o PSDB acabou como um PMDB menor, disposto a mostrar que seria possível a conciliação entre reforma social e estabilidade da ordem vigente. Terminou, pois, sob o modelo de social-democracia, suscetível de ser manipulado fora e acima dos requisitos dessa corrente política.
A evolução favorecia, naturalmente, a formação de blocos políticos heterogêneos. A conciliação já estava feita dentro do partido. Nada se opunha a que ela fosse ampliada, instrumentalizando arranjos técnicos e estratégicos como os que culminaram na composição da social-democracia com forças sociais e político-partidárias conservadoras ou ultraconservadoras. Representantes das oligarquias mandonistas e clientelistas viram-se, assim, preservados e revitalizados na ocupação do poder.
O panorama internacional impulsionou essa ``modernização" às avessas. Ela adensava as perspectivas de difusão do neoliberalismo e dos fins dos oligopólios e do sistema de poder associado a um tipo de Estado sem lugar para a ``reforma social". Despojar o trabalho e os trabalhadores das condições de classe em si e para si, bem como aniquilar os remanescentes da concepção socialista de mundo, converteram-se em seus alvos imperativos.
É interessante notar como, nesse contexto, os antigos esquerdistas procuram recuperar, na esfera da propaganda, seu desaparecido perfil de radicalidade. Apegam-se, todavia, a uma imagem que sofreu completa erosão. Saudosismo posto de lado, talvez pretendam criar aparências suaves, agitando uma identidade que se dissolveu no ar. Quais seriam os fatores compensatórios dessa compulsão aberrante?

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