São Paulo, terça-feira, 6 de junho de 1995
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Não se fazem mais pobres como no passado

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

N ão há como negar: a miséria está na moda. Uma moda que ninguém quer ver. É um desfile pardo e sujo a que tentamos assistir de costas. Enquanto os intelectuais lamentam o fim das ideologias, a miséria cresce como uma sinfonia em direção à apoteose.
Tudo bem, o leninismo não deu conta. E a ``nova ordem", como vai acabar com a miséria? Ninguém sabe. O humanismo dos lero-leros liberais é tão ridículo quanto os discursos soviéticos. A miséria vai virando um sucesso total. É a maior produção do mundo moderno.
A Cia. das Letras lançou um livro fantástico: ``Os Filhos de Caim", do polonês Bronislaw Geremek, um intelectual que dedicou a vida ao estudo do pauperismo através dos tempos. O resultado é uma viagem monumental ao submundo medieval e moderno, por onde vagueia a figura mutante e atualíssima do excluído social.
Geremek traz à tona a história incrível dos vagabundos, mendigos e prostitutas, virando este universo grotesco numa espécie de espelho invertido do corpo social. Quando chega o excluído de hoje, tudo muda de repente. Que novidade é esta do fim do século?
Como outras áreas da vida, a miséria perdeu seu charme. Só um cinismo pós-tudo dá conta da nova miséria. Não se fazem mais miseráveis como antigamente...

A neomiséria
Lendo ``Os Filhos de Caim", vemos como até a miséria decaiu muito. Os humanistas, coitados, estão de mãos abanando, sem assunto. Vejo na TV, em Salvador, 33 mortos na lama. A TV diz que foi a chuva; não ocorre que seja a miséria da vigilância civil que permite favelas em abismos.
A miséria abandonou a literatura e virou notícia. O miserável já foi uma metáfora; hoje não é mais. O miserável já foi o símbolo mutante de uma verdade profunda sobre a existência humana. Sem laços materiais, vagando pelos séculos, ele sempre fascinou os artistas. Bosch, Cervantes, Shakespeare, Victor Hugo, Brecht, Beckett fizeram dele um espelho côncavo do nosso absurdo.
Os miseráveis tinham uma nobreza simbólica forte. Em Shakespeare, eles viam mais que os reis; em Brecht, eles eram os puros donos do futuro; em Beckett, visões do Nada. Os mendigos, no saber, na política ou na metafísica, moravam no futuro. Hoje, o miserável só habita um terrível Presente.
A miséria já teve seus dias de glória, mesmo recentemente. A miséria já esteve nas revistas, nas teses de sociologia, mas sempre como uma triste ``exceção", como uma mancha em nossa esperança. Os miseráveis também habitavam os livros e filmes, eram ótimos temas para as condenações dos progressistas que faturaram altas granas. A miséria já nos deu muito lucro; hoje não vale nada.
Crescendo desordenadamente, a miséria deixou de ser uma exceção e virou regra. Nós viramos a exceção. Artistas e intelectuais condenávamos a miséria, mas queríamos que ela ficasse lá longe, numa distância segura. Queríamos a miséria em compota, ``en galantine", um ``pickles" de miséria.
A miséria visava nos dar a calma do horror. Aplacava nossa consciência e não interferia na santa paz de nosso escândalo. Em outras palavras, a miséria já teve importante função social. O miserável muito nos prometeu e nos decepcionou muito. Nada é perfeito.
Os miseráveis eram uma curiosidade etnológica; hoje, com o aumento da população, nós é que somos uma curiosidade. Já foram um problema social. Hoje são um enigma ecológico. Os pobres já tiveram grande valor, aclamados pelo cristianismo. Agora não passam de um mercado emergente para as igrejas competitivas.
Os jovens viam nos pobres a vanguarda política, a bandeira do futuro, o símbolo da revolução social. Eles iam vingar todos os injustiçados. Os miseráveis eram nossa salvação. Bons tempos. Os miseráveis perderam a ``allure" épica. Os pobres não são mais oprimidos. São excluídos. ``Excluído" já é um termo excludente. Hoje, eles não estão mais no futuro nem no presente. Vagam nas bordas, como náufragos querendo subir no navio. Não podem.
Lendo o livro de Geremek, vemos que os ``Filhos de Caim" eram videntes e filósofos nas literaturas. Hoje, perderam a beleza culta. Os mendigos eram vistos com tanta liberdade na Idade Média que até parecia que a miséria era uma opção existencial. Os hippies foram a última tentativa da moda ``povera". Hoje não há mais empregos, logo não há hippies.
Agora, acabaram os pobres individuados. Só massas excluídas, que a TV tenta esconder, mostrando. Tanto vemos os miserávis que ele estão ficando invisíveis. A consciência do problema não traz problemas de consciência.

Lógica mendiga
Os excluídos de hoje não nos iluminam. Não são capazes de acrescentar riqueza alguma a nossas vidas. Em vão, tentamos aprender com sua desgraça. Perderam a significação poética. No entanto, eles percorrem tantos desvãos e favelas que bem que poderiam nos ensinar alguma coisa.
Os excluídos de hoje são umas malas sem alça. Pedimos sentido a eles e só nos devolvem obtusidade. Pedimos originalidade picaresca, como nos deram os heróis da miséria como Lazarillo de Tormes ou Till Eulenspiegel, mas apenas devolvem nossa própria imagem, como num espelho baço, como se fossem psicanalistas.
Nós, politicamente corretos, continuamos a condenar a miséria, enquanto ela cresce. Na verdade, só amamos os miseráveis porque queremos nossa salvação. Mas eles não são generosos conosco. Sabemos que eles nada têm e que este nada é sua riqueza.
Queremos roubar alguma coisa deles, mas eles tudo nos oferecem, nos cegando com sua obviedade rasa. Eles nada têm, mas não são niilistas. Talvez mendigos belgas ou franceses sejam, sei lá.
Os miseráveis não são humanistas, como os ricos, ``hélas!". Eles não sabem que sua vida é nosso horror. Os excluídos não têm sentido histórico. Não se pode falar em ``opção", em ``projeto", com mendigos. Seus projetos são irritantemente concretos. Ex.: ``Meu projeto é arranjar comida".
São materialistas, mas não são dialéticos. São pragmáticos, como os americanos. Eles têm uma paz no sofrimento que nos humilha e até nos dá uma grande inveja. ``Que sabem eles que eu não sei?", pensamos. Se não dão mais lucro literário, nem consolo para nossa culpa, então para que servem os miseráveis?
Bem, se nossos miseráveis perderam o feitiço poético dos tempos de Cervantes (``oh mendigos sujos, gordos, ensebados, falsos pobres, miseráveis da praça de Madri, paralíticos na aparência e declamadores de rezas, criados de bordel, arriai as bandeiras! É ali que estão: a sujeira limpa, a gordura roliça, a fome a postos, o vício sem máscara, o jogo, obscenidades, bailes como em dias de bodas!"), por outro lado, ganharam uma modernidade inesperada.
Sim! O ângulo dos excluídos nos permite uma luz nova sobre o mundo! Eureka! Eles nos mostram, por exemplo, que a idéia de continuidade histórica, de evolução do espírito, é errada. Um país pode andar para a frente ou para trás. É a mesma coisa.
As coisas são mais a-históricas do que pensávamos, ensinam nossos miseráveis com uma sabedoria de acordo com os tempos pós-tudo. O espaço e o tempo dos excluídos é diferente do nosso. Eles não têm segunda-feira, ``happy hour", feriado. Estão num espaço baldio, num presente enorme.
Fatos para nós absurdos têm para eles um sentido mais moderno. Por exemplo, lemos no jornal: ``Ruralistas conseguem empréstimos sem juros". Isto pra nós é um escândalo. Visto do ângulo-mendigo, é apenas um evento a mais no horizonte, como, digamos, ``fulano morreu na enchente" ou ``roubaram minha latinha". A lógica mendiga permite entender melhor o Brasil.

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