São Paulo, sexta-feira, 9 de junho de 1995
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Brasil redefine noção de esquerda e direita

MARCELO COELHO

Da Equipe de Articulistas T ornou-se comum dizer que palavras como ``esquerda" e ``direita" já não têm mais sentido na política contemporânea. O fracasso dos regimes socialistas teria dissolvido em boa parte essa distinção; e, mesmo antes disso, durante as reformas promovidas por Gorbatchov na ex-URSS, o problema da classificação era complicado: Gorbatchov era ``de esquerda" ou ``de direita"?
O pensador político italiano Norberto Bobbio escreveu há dois anos um livro sobre o assunto, agora traduzido no Brasil, ``Direita e Esquerda. Razões e Significados de uma Distinção Política", editora da Unesp.
A discussão vem a calhar. Bobbio é um teórico bastante claro, embora sem brilho. Sua maior qualidade talvez seja a de ser respeitado por todo mundo. Transmite uma imagem de isenção e equilíbrio; sem pretensões a ser original, costuma errar pouco.
``Direita e Esquerda" contém algumas idéias óbvias, mas às vezes a obviedade tem a vantagem de organizar um pouco o nosso pensamento. É pena que Bobbio pareça, no começo do livro, estar tentando organizar o seu. Tarefa um pouco ingrata, por dois motivos.
O primeiro é que até a metade do livro o raciocínio é puramente abstrato -Bobbio fala em ``díades", na oposição preto versus branco, no meio-termo, no Terceiro Incluído, manipulando de modo algo entorpecido o vocabulário da lógica formal.
O segundo motivo é que Bobbio está às voltas com o debate político italiano, citando tomadas de posição e artigos de jornal em que uma profusão de nomes para nós desconhecidos parece sempre atrasar o desenvolvimento da argumentação. As notas do tradutor são valiosas nessa hora.
Seja como for, Bobbio lembra uma coisa importante: os conceitos de ``direita" e ``esquerda" são anteriores à polêmica capitalismo versus socialismo e abrangem atitudes políticas mais amplas do que as enfocadas nesse debate.
A idéia ou o ideal de socialismo parece, atualmente, se não descartada da vida política concreta, ao menos exposta a toda uma série de redefinições espinhosas. Mas ``esquerda" e ``direita", argumenta Bobbio com razão, continuam a servir como pontos de referência indispensáveis. Não há por que descartá-los, mesmo porque não há quem os descarte na prática.
A discussão se torna mais interessante quando Bobbio levanta quais são, afinal, os critérios para se dizer que alguém é de direita ou de esquerda.
Como aliás sempre ocorre quando se discutem definições de palavras muito utilizadas, importa menos descobrir qual a essência que se esconde atrás delas, e sim apontar os limites com que podemos empregá-las de forma significativa.
Bobbio propõe um critério afinal bastante simples. Parte da constatação de que os homens, por um lado, são todos iguais entre si; de outro, cada indivíduo é diferente dos demais.
``Podem ser chamados de igualitários aqueles que, embora não ignorando que os homens são tão iguais quanto desiguais, apreciam de modo especial e consideram mais importante para a boa convivência aquilo que os une; podem ser chamados de inigualitários aqueles que, partindo do mesmo juízo de fato, apreciam e consideram mais importante, para a boa convivência, a diversidade."
Numa linguagem que claramente se abstém de fazer juízos de valor, Bobbio sugere então que são de esquerda as pessoas que se interessam pela eliminação das desigualdades sociais, ao passo que a direita insiste na convicção de que as desigualdades são naturais ``e, enquanto tal, inelimináveis."
O critério igualitarismo/não-igualitarismo para distinguir entre esquerda e direita é, à primeira vista, convincente. Mas não deixei de pensar em alguns problemas dessa definição.
Veja-se o caso do Brasil. As desigualdades sociais são tão escandalosas que não creio haver ninguém que se diga a favor do status quo. Dificilmente uma pessoa pode argumentar que as disparidades de renda se devem a uma justa remuneração do mérito individual.
Ao contrário, todos se dizem empenhados em reduzir as desigualdades. Seriam todos de esquerda? Sabemos que não. O debate político se desenvolve entre os que consideram necessário mais capitalismo -liberdade de mercado, proteção ao investimento, menos impostos, menos direitos sociais- como forma de garantir a prosperidade geral e entre os que não abrem mão de redistributivismo, mais impostos, mais direitos sociais como o caminho para diminuir as desigualdades.
Sempre usei de um critério particular para distinguir entre direita e esquerda. Num romance de George Sand (1804-1876), bem ao estilo sentimental e populista, um personagem perguntava por que havia tanta pobreza. A resposta era eloquente: ``Por culpa dos ricos".
Mesmo tirando o tom sentimental e cristão da resposta, creio que aponta para um critério que talvez funcione. Para a esquerda, de algum modo, a ``culpa" será sempre dos ricos. E, para a direita, a ``culpa"... é dos próprios pobres (que não trabalham, que no fundo ``não querem ser ajudados" e, se ajudar, piora etc.).
Falando de modo menos metafórico, a direita não é necessariamente a favor das desigualdades, mas confia em que possam ser diminuídas à medida que se favoreça a competitividade geral; minimiza o fator ``proteção" e maximiza o ``esforço próprio". Ao passo que a esquerda maximiza a proteção contra a competição social.
Não fica tão estranha, assim, a aliança entre a esquerda brasileira e o nacionalismo desenvolvimentista. A indústria nascente era tão fraca, tão necessitada de proteção, quanto os pobres. A desconfiança quanto ao princípio da competição aberta de todos contra todos está na raiz, sem dúvida, das posições tomadas pela esquerda no Brasil.
E, sem dúvida, a direita não argumenta necessariamente em favor da desigualdade, ainda que seus atos levem sempre a acentuá-la. É até possível, no mundo contemporâneo, imaginar estratégias ``de direita" no sentido de diminuir as desigualdades que ao mesmo tempo estimulam uma ``dessolidarização", por assim dizer, da sociedade, investindo ao máximo na desconfiança mútua, a guerra de todos contra todos.
Escolas públicas ultracompetitivas, num terror psicológico extremo, à japonesa, seriam ``de direita" e voltadas para um extremo de competência tecnológica. Escolas públicas mais liberais, voltadas à formação dos cidadãos, com ênfase sobre a educação artística e humanística, seriam mais ``de esquerda". Mas talvez as primeiras fossem mais úteis no sentido de reduzir as desigualdades sociais...
É um exemplo isolado. Mas serve para pensar a questão da esquerda e da direita em termos talvez mais complexos do que a formulação de Bobbio. Não tanto ``desigualdades versus igualdade", mas um debate entre competitividade e comunidade. Trata-se de pensar se a sociedade humana tem raiz na guerra de todos contra todos ou na possibilidade de enriquecimento que surge de um convívio solidário. E, talvez, a partir daí o termo ``socialismo" ainda faça algum sentido.

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