São Paulo, domingo, 11 de junho de 1995
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O resgate da poesia renegada de Platão

JOSÉ PAULO PAES
ESPECIAL PARA A FOLHA

No seu empenho de entender a ordem do universo, os pré-socráticos não separavam a filosofia da poesia. Parmênides pôs nos versos de ``Sobre a Natureza" seus vislumbres ontológicos. Num outro poema de igual título, e nas ``Purificações", Empédocles, combinando o ser imóvel de Parmênides ao ser protéico de Heráclito, formulou também em verso a sua doutrina dos quatro elementos. O velamento e desvelamento do ser, típicos da visada poética, eram as duas faces indissociáveis daquela simplicidade de compreensão tão encarecida por Heidegger nos pré-socráticos.
Foi o demônio do sistema que levou Sócrates e seus discípulos a distanciar entre si filosofia e poesia. No ``Banquete" platônico, embora reconhecendo que o delírio do poeta inspiravam-no as Musas, e que todo delírio provindo dos deuses era ``mais nobre que a sabedoria provinda dos homens", Sócrates punha o filósofo, alma de primeiro grau, acima do poeta, alma de sexto grau, porque aquele tinha contemplado mais de perto o mundo das essências, das verdades puras, ao passo que este era um mero ``produtor de imitações" do mundo das aparências.
E no livro 10 da ``República", o mesmo Sócrates não hesitou em banir da sua cidade ideal o poeta que ``destrói a parte racional" da alma humana ao ``conceber imagens que estão muitíssimo longe da verdade" e que, com suas imitações, ``corrompe até mesmo as pessoas decentes, salvo raríssimas exceções".
Atribui-se a esse socrático rebaixamento da ``poiesis" em face da ``sophia" o gesto extremo de Platão de, ao conhecer Sócrates e dele se tornar discípulo, como tantos outros jovens aristocratas atenienses da época, renegar toda a sua obra poética. Consta que ele teria chegado a escrever poemas trágicos, líricos e elegíacos, bem como uma série de epigramas. Dessa produção em verso só nos chegaram alguns epigramas recolhidos na ``Antologia Grega" ou ``Palatina", a mais rica coleção de poemas curtos da literatura grega.
A autenticidade dos epigramas platônicos é ainda hoje objeto de controvérsia. A maioria dos críticos os considera apócrifos. No dizer de Pierre Waltz, ``simplesmente porque é impossível provar-lhes formalmente a autenticidade". Mas Waltz não refere tampouco nenhuma prova formal de sua inautenticidade. Limita-se a dizer que especialistas como Knaack e Wilamowitz têm por autênticos apenas aqueles em que aparecem nomeados contemporâneos de Platão, a exemplo do Fedro do diálogo homônimo citado no epigrama 7: 100, como se eventuais falsários não pudessem se valer precisamente disso como estratagema para ``autenticar" suas fraudes.
A delicadeza lírica dos epigramas atribuídos a Platão, a quem caberia a primazia da introdução de temas amorosos na epigramística, são um argumento implícito em favor de sua autenticidade. Eles não desmerecem aquela imaginação poética que, ao afeiçoar mitos como os da caverna ou do andrógino primordial, nos deu, mesmo em prosa, sinais da sua grandeza.

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