São Paulo, terça-feira, 13 de junho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O mundo dos tijolos

LAURO CAMPOS

Nós nos encontramos neste momento, no meu ponto de vista, numa situação que talvez não tenha precedentes, não apenas na nossa conturbada história política e social brasileira. Aqueles que têm antenas para perceber o futuro estão conscientes de que a sociedade, a cada momento, toma mais conhecimento, firma mais a sua convicção de que a situação, a conjuntura internacional é das mais graves.
São tão numerosas e protéicas as formas pelas quais o protesto humano se manifesta; são tão violentas as expressões de inconformismo com os 820 milhões de desempregados com que nos deparamos hoje; é tão grande a perplexidade diante de um endividamento que vai nos consumir o futuro, porque o endividamento atingiu e se aprofunda inclusive nos EUA, o núcleo axial desse sistema capitalista transtornado em suas raízes.
Ao mesmo tempo, existe o movimento centrífugo de proteção e de tentativa de formação de um espaço, como o Mercado Comum Europeu, a área dos ``tigres asiáticos", o Nafta, o Mercosul. A área de proteção é uma espécie de guarda-chuva diante das ameaças de aprofundamento da crise, porque em todas as crises o nacionalismo e o protecionismo quiseram fazer com que uma espécie de colchão protegesse o Estado nacional, o mercado nacional contra a invasão das mercadorias cada vez mais difíceis de serem colocadas nos mercados em que o desemprego, a miséria e a pobreza tomam conta.
De modo que, então, ao lado deste movimento de formação de mercados e de áreas comuns, a fim de proteger e de resguardar um espaço maior para que o comércio não atinja níveis tão grandes de degradação -como aconteceu em crises anteriores, como a de 1929 e a de 1935, em que 68 países já haviam desvalorizado a sua moeda e o protecionismo se ergueu a fim de defender esse espaço interno-, hoje, sentimos a presença deste mecanismo de defesa de um lado e, de outro, vemos que etnias se confrontam, lutas medievais se atualizam e se modernizam, espaços privilegiados procuram livrar-se do contrapeso de seus vizinhos, de seus apêndices, a fim de conquistar posição de superioridade, destaque e privilégio diante da crise que se aproxima.
Desde a Irlanda à luta dos bascos, da Chechênia até os confins da Ásia, Bósnia etc. No meu ponto de vista, há uma unidade entre todas essas dissensões, que não apenas ocorrem no espaço conturbado do Leste Europeu, mas permeiam a América Central e praticamente o mundo todo. Esse é o conteúdo novo dessa crise. As crises anteriores não apresentaram esse aspecto, que é um dos pontos mais importantes e mais interessantes que essa degradação, esse ``bouleversement du monde", esse transtorno que o mundo moderno apresenta.
Não tenho nenhuma dúvida de que o presidente Fernando Henrique Cardoso assinaria embaixo das minhas palavras, como assino embaixo das palavras de Sua Excelência quando diz existir um movimento inexorável que pode, hoje, ser apelidado, de uma maneira educada, de uma nova forma de inserção do Brasil no mundo, mas que antes era chamado de relações do imperialismo mundial em direção à periferia. Movimento esse que levaria fatalmente, de acordo com o ex-professor Fernando Henrique Cardoso, a uma situação como essa, em que o próprio governo nacional não tem mais controle sobre as alavancas de comando da economia. São ditadas e impostas as teias dos limites do equilíbrio orçamentário e as relações externas nos são impostas por meio de taxas de câmbio que vêm de fora.
E assim vamos vivendo esse processo de dominação crescente. Capital é poder; poder sobre coisas e pessoas, como o presidente Fernando Henrique Cardoso repetiu de Marx. E ao vir o capital, o capital produtivo, principalmente na década de 50, e atrás dele o capital de comércio e o bancário, o poder foi sendo tomado e permeado por elementos externos e estranhos à nacionalidade brasileira. O presidente da República Fernando Henrique Cardoso afirma que se cria aqui o antiestado nacional, e neste apenas pequenos estamentos, pequenos grupos privilegiados escapam do processo de espoliação e de exclusão. O chefe da nação afirma que só alguns capitalistas felizes se associam ao grande capital externo com seu poder de dominação, assim como alguns segmentos do Exército e da elite intelectual.
Aqui, num exame feito meticulosamente pelo presidente da República, percebemos que Sua Excelência sabia o que estava acontecendo e nós estávamos sendo levados para um beco sem saída. Diante dessa situação, de duas uma: ou daríamos murro em ponta de faca, porque as forças externas são inexoráveis e sua força e potência são avassaladoras, ou seguraríamos o punhal, passando para o outro lado, o lado dos vitoriosos.
Diante dos fatos que ocorrem mundo afora, diante das convulsões em que essa crise fantástica assume formas de manifestação terríveis, que vão desde o fato de 49 pessoas serem assassinadas em um fim-de-semana no Rio ou de 490 pessoas serem assaltadas nos ônibus na capital de São Paulo, quando vemos tanques subirem as favelas, diante desse quadro, o que percebemos é que a crise atual manifesta-se de diversas formas.
Se a sociedade é agressiva, se ela coloca nas penitenciárias os transgressores da lei, se a sociedade transforma essas penitenciárias em campos de concentração, se a sociedade organizada marginaliza-se e deixa que duas crianças morram por minuto neste país, não é possível exigirmos do homem um comportamento civilizado.
O homem tem seu comportamento como ser social situacionalmente determinado. Ele não é um ser de laboratório. Ele é o resultado dessa vivência, ele é o resultado das exclusões e dos sacrifícios a que se submeteu, ele é o resultado de seu desemprego, ele é o resultado do seu desencanto, quando ele viu, depois de 30 anos de promessas, seus sacrifícios serem desprezados, sacrifícios que iriam construir uma nação em que as grandes empresas estatais seriam o baluarte para que o Brasil se apresentasse como uma organização nova, em que o bolo crescesse e fosse distribuído para todos.
Que bolo é esse? Que bolo perverso é esse, que nos reclama mais a cada dia?
Enquanto isso, o governo brasileiro pagava, em 89, 75% da receita pelo serviço da dívida pública aos banqueiros. Ao mesmo tempo, 10% da população se apropria de 50% do resultado do trabalho coletivo.
Os trabalhadores não foram consultados senão para lhes retirar mais, para lhes burlar os índices de recuperação do mísero salário, para lhes retirar 11 milhões de casas. Foram colocados 34,7 milhões de brasileiros abaixo da linha da miséria.
Não é possível, em um momento como este, fazermos poesias, a não ser, talvez, aquelas que os futuristas fizeram na época de Mussolini, louvando e comparando o fogo das metralhas com flores, ou relacionando a morte nos campos de batalha aos lírios e objetos de exaltação poética, como no manifesto de Marinetti.

Texto Anterior: Sem restrições; Equivalência patrimonial; Registro anterior; Ressaca doméstica; Números da siderúrgica; Unidade desativada; Fumaça distribuída; Em nome
Próximo Texto: Menem pede a Cavallo medidas anti-recessão
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.