São Paulo, domingo, 18 de junho de 1995
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Querida Mary

HANNAH ARENDT

Tegna
8 de agosto de 1969
Mary querida,
Eu queria e devia ter escrito há muito tempo, mas, imediatamente depois de sua carta, recebi a "Review of Books" com seu texto sobre Sarraute(1), e então havia tanto a escrever que desisti. Li-o com grande entusiasmo, não só por causa da qualidade do texto em si, mas também porque tem grande quantidade de aspectos muito, mas muito próximos mesmo de coisas sobre as quais tenho pensado nos últimos anos.
Toda a questão da vida interior, seu turbilhão, multiplicação, a divisão-em-duas (consciência), o fato curioso de que só sou Uma com o outro(2), a importância ou não-importância que esses dados têm para o processo de pensar, o "diálogo silencioso entre eu e eu mesma" etc.
Agora estou relendo "Entre la Vie et la Mort" (de Sarraute) -graças que você me trouxe outro exemplar-, tenho certeza de que não entendi quando comecei e parei pela primeira vez. Pensei que ela subitamente leva a sério a comédia social. Para mim e minhas finalidades especiais, a frase mais importante do seu ensaio é: "Dentro... não existe diferença; todos são semelhantes". Isto é literalmente verdade, não apenas metaforicamente: só o que aparece do lado de fora é distinto, diferente, ou mesmo único.
Em suma, todas as nossas emoções são as mesmas, a diferença está no que e em como nós as fazemos aparecer. Em outros termos, a natureza escondeu tudo que é meramente funcional e deixou-o sem forma. O que é exterior e aparece é, por exemplo, estritamente simétrico, colorido etc., os órgãos internos de todas as coisas vivas não são para serem olhados, como se tivessem sido reunidos a esmo.
Ad (sobre o) alter ego: o diálogo silencioso do pensamento acontece entre eu e eu mesma, mas não entre dois eus. No pensamento, você é sem-eu -sem idade, sem atributos psicológicos, sem nada do que você "realmente" é. Este dois-em-um pode ser pervertido, e então dois eus falam um com o outro, cada um deles afirmando ser o "verdadeiro" eu, crise de identidade e toda essa tolice, inclusive a infinita regressão inerente a isso(3).
É verdade, claro, que algo sempre acontece constantemente dentro de mim; é "algo" em relação ao mundo externo, algo "interno" olhando para o "externo". Para onde mais poderia olhar? Se começar a olhar para dentro(4) tropeça imediatamente na regressão infinita, não um eu, mas a multiplicação.
A "projeção do próprio ego no mundo" é ou um projeto concreto -farei, direi isto ou aquilo etc.- ou uma projeção do mundo para dentro do próprio ego. O "cogito me cogitare" (eu me penso pensando) cartesiano como única realidade. Não "cogito mundum" (eu penso o mundo) ou qualquer outra coisa, mas "cogito me cogitare", cogito me cogitare cogitare (eu me penso pensando, eu me penso pensando o pensar) etc.; daí resulta que agora o mundo é submetido à mesma modificação caleidoscópica, é infectado, por assim dizer, pelo turbilhão interno do eu, por sua "informidade".
Nesse turbilhão interno, todas as identidades se dissolvem, não há nada mais a que se ater. A identidade depende da manifestação, e manifestação é, antes de mais nada, exterior. (...)
A fala é manifestação exterior de algo interior; mas é um erro acreditar que essa apresentação é um mero reflexo que representa uma espécie de cópia carbono do que ocorreu no interior. Fala, gestos, expressões do rosto -tudo isso torna manifesto algo oculto, e é esta manifestação que modifica o interior informe, caótico, de tal maneira que se torna apropriado para o aparecimento, para ser visto ou ouvido. Em prova do que digo, ele nos obriga a nos definir, nos comprometer etc.
Poder-se-ia dizer (com Aristóteles) que tudo que é aparece, mas a questão aqui é que tudo que é vivo, todo organismo vivo parece ter um "impulso" de aparecer; a biologia moderna, especialmente A. Portmann(5) e sua escola, mostraram que a explicação funcional de dados naturais -autopreservação e sobrevivência da espécie- não consegue dar conta da própria riqueza dos fenômenos.
Portmann define a vida como "o aparecimento de um `interior' num `exterior'" , e aqui também o que na verdade aparece não é, claro está, de modo algum o mesmo que "está" dentro, o interior que podemos ver quando dissecamos.
Como vemos, a diferença entre o homem e o animal não residiria apenas na manifestação, termo que agora uso no sentido de escolha deliberada do que quero que apareça, mas na fala, na medida em que não é apenas comunicação com certas finalidades -a "linguagem" das abelhas, sua dança, ou o som dos passarinhos são muito adequados para o propósito da mera informação-, mas que, por definição, as palavras sobrevivem e transcendem as finalidades condicionadas pela vida, pelo menos enquanto dura a espécie, as palavras se tornam parte do mundo.
Se enfocarmos a "vida interior" deste ponto de vista, a irrupção do interior é como o ruído inevitável de nosso aparelho funcional, que Broch chamou de "Seelanãrm", ruído da alma. É o que faz o nosso tique-taque. Não é menos indecente, impróprio para aparecer, que nosso aparelho digestivo, ou nossos órgãos internos, que também estão ocultos da visibilidade pela pele.
Portanto, "a ação em Nathalie Sarraute emerge das trevas que a oculta com um grau de visibilidade que é quase impudico" (McCarthy). Se as próprias trevas aparecessem, veríamos que somos todos "iguais", e elas só aparecem quando estamos doentes.
Isto foi escrito com alguma pressa e impaciência -só para lhe dizer como, e o quanto, fiquei impressionada com seu texto. Espero que minha impaciência não torne a presente incompreensível. Se for o caso -"tant pis". Mais uma coisa: "A força da repetição mata verdades eternas" (McCarthy). Acho que é verdade, mas é muito estranho e totalmente perturbador.
Espero que sua hérnia de disco já esteja curada, e que você ainda perca o fôlego de prazer por sua casa. (...) Terminei o "Ensaio sobre a Violência" e mandarei rebater quando voltar a Nova York.(...)
Terei de fazer o negócio sobre Heidegger(6) para a Rundfunk (rádio) bávara , e só Deus sabe quanto tempo vou demorar.(...)
Você sabia que Saul Bellow e Harold Rosenberg querem abrir uma nova revista juntos? Estranho, não?
Minha querida, cuide-se, e muito carinho para vocês dois.
Sua,
Hannah
Foi maravilhoso tê-la aqui, tentaremos estar com você o mais breve possível.
Seu,
Heinrich

NOTAS:
(1) Mary McCarthy, "Hanging by a Thread", The New York Review of Books, 31 de julho de 1969, resenha de "Entre la Vie et la Mort", de Nathalie Sarraute. Reimpressa em "The Writing on the Wall.
(2) (Nota à margem) "Tantôt je pense, tantôt je suis" (Às vezes penso, às vezes sou, diz Valéry.)
(3) Muitos também afirmam ser o "verdadeiro" Ego.
(4) Se replier sur soi-même (fechar-se em si mesmo).
(5) Adolf Portmann (1897-1982) foi um zoólogo suíço cuja obra "Animals as Social Beings" (edição americana de 1958) pode ter inspirado esta referência.
(6) Após uma reconciliação amistosa com Heidegger em Friburgo no verão de 1967, Arendt concorda em contribuir para o "festschift" de seu octogésimo aniversário. Seu texto foi "Martin Heidegger at 80"; foi publicado primeiro na revista alemã "Merkur" em 1969, e depois em "The New York Review of Books" em 21 de outubro de 1971.

Tradução de SIENI CAMPOS

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