São Paulo, domingo, 18 de junho de 1995
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A revolução poética de Mário de Sá-Carneiro

FRANCISCO ACHCAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

O uso que Flaubert faz de três aspectos verbais, certos pronomes e algumas preposições equivale, para Proust, a uma revolução kantiana em nossa maneira de ver o mundo. Nos mesmos três itens -uso de verbos, pronomes e preposições-, as obras de Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro constituem, "mutatis mutandis" (e há muito a mudar), uma revolução comparável no âmbito da língua portuguesa.
Tal enorme renovação linguística e literária tem sido geralmente creditada a Pessoa; Sá-Carneiro, que se suicidou em 1916, com 26 anos incompletos e pequena e rara obra, é quase sempre deixado em segundo plano, quando não desaparece atrás do companheiro.
Se, diante da grandeza e amplitude da obra de Pessoa, a atribuição de papel secundário a Sá-Carneiro é compreensível, é contudo um absurdo gritante negligenciar sua poesia.
Quanto a sua prosa, ainda que brilhe por momentos nas belas páginas ou boas idéias que há nos contos de "Céu em Fogo", ela não chega a elevá-lo muito acima de uma pequena literatura de época, que se quer sutil e "artista". (Arrisco essa opinião a despeito de gosto que têm por "A Confissão de Lúcio" tanto o organizador da edição Nova Aguilar, quanto os responsáveis pelo vestibular de literatura da Unicamp, que incluíram essa narrativa frouxa numa lista de leituras obrigatórias que deveria conter textos capitais da língua).
O volume da editora Iluminuras promete apenas a poesia, mas traz também uma seleção da correspondência, em especial, naturalmente, as cartas a Fernando Pessoa. O corpus dos poemas vem acompanhado de um apêndice de juvenília, constante de 11 peças. Fernando Paixão, organizador e anotador do livro (que contém ainda uma cronologia e uma bibliografia básica), é autor do ensaio introdutório, "O Rodopio das Imagens Poéticas", em que apresenta o poeta, sua poesia e sua poética.
A edição da Nova Aguilar, aos cuidados de Alexei Bueno, consiste num respeitável volume de 1.100 páginas em papel bíblia, com introdução, cronologia, bibliografia, iconografia e tudo o que se pôde reunir da produção do poeta: o conjunto canônico de poesias (com dois acréscimos sem maior significação e uma "meia omissão", adiante comentada), seguido de 48 poemas juvenis e todas as obras em prosa, incluídos os livros que o autor condenou, além de um apêndice de contos e fragmentos dispersos.
As cartas a Fernando Pessoa vêm cuidadosamente organizadas em sequência cronológica e acompanhadas de cartas, cartões ou telegramas a outros amigos e a familiares. (Entre parênteses, dois pequenos reparos. É estranho que o poema "Aqueloutro" venha com o título mudado para "Aquele outro". É lamentável que o segundo poema intitulado "Apoteose" pareça faltar nesta edição da obra completa. Na verdade ele está presente, mas como se fosse uma seção de "Manucure", assim confundido no texto e ausente dos índices.)
Portanto, temos, à escolha, duas edições bastante diferentes de Sá-Carneiro: o livro da Iluminuras atende àqueles que querem o essencial do autor, e não se dispõem investir tempo na leitura completa da obra e dinheiro na aquisição de um volume mais caro.
O livro da Nova Aguilar -um objeto tipográfico agradável e cômodo como os demais volumes da "Biblioteca Luso-brasileira", da mesma editora- destina-se, doravante, a ser o texto de referência para o conhecimento e o estudo da obra de Sá-Carneiro, assim como o foi por muitos anos a edição Aguilar de Fernando Pessoa. É pena que, num empreendimento dessa importância, um ou outro erro, como os apontados, escapasse à atenção (que se imagina imensa) do organizador e dos demais responsáveis.
Mas o problema principal do lançamento da Nova Aguilar não está, felizmente, na edição do texto do poeta, mas sim no texto que o introduz, de autoria do diligente e fervoroso organizador do volume, Alexei Bueno.
Aqui, estamos a imensa distância da moderação que caracteriza o texto equivalente de Fernando Paixão. Alexei Bueno forra sua introdução de asserções de um credo estético que o leitor, algo constrangido, se vê forçado a tolerar ou rejeitar, ficando em ambos os casos em situação difícil para continuar a leitura. Assim, o texto abunda em efusões que nos revelam um analista sequaz do decadentismo penumbrista que constituiu uma das fontes do autor analisado: Arte, Morte, Mistério, maiusculados, são grandes figuras que nos devem facultar o entendimento da vida como da obra do "gênio" que nos é apresentado.
Depois de enumerar quase tudo o que conta, e mesmo o que não conta, na poesia portuguesa imediatamente anterior a Sá-Carneiro, Bueno conclui, num trecho que bem exemplifica o seu gosto de dotar cada substantivo de seu adjetivo: "Toda essa genealogia literária forneceu a Sá-Carneiro o instrumental perfeito para a demanda desesperada do último ideal possível, a busca da beleza perdida a que se entregou, com absoluta coragem e coerência trágica".
Também a história é objeto de rompantes enormemente pretensiosos e que não resistem ao primeiro gesto de verificação ou análise. Sirva de exemplo o trecho seguinte, carregado de desinformação e mitificação (desculpe o leitor a citação longa, mas bastante ilustrativa):
"Na Grécia clássica, a única civilização estética que a humanidade viu surgir, essa relação (a `relação interesse-demanda que presidia tradicionalmente à criação da obra de arte') assumia uma naturalidade e uma necessidade perfeitas, fazendo desse período -não sociologicamente, mas no que diz respeito às questões do espírito- o apogeu de toda a História, perante o qual as diversas épocas, e a nossa com especial destaque, só se podem julgar como estados de decadência. De fato, para um ateniense da grande época, uma nova peça de Eurípedes trazia a mesma carga de interesse que uma grande partida de futebol para as massas nossas contemporâneas. As dicotomias erudito-popular e ética-estética se encontravam naturalmente rompidas".
E assim por diante, num desfile que, num mesmo parágrafo, vai do Renascimento à poesia pós-simbolista e ao "grande cinema da década de 20".
O que há de mais informativo na introdução de Alexei Bueno está nas observações sobre as semelhanças entre Sá-Carneiro e Ernâni Rosas, poeta para o qual recentemente Augusto de Campos chamou a atenção, mas cuja poesia soa como imitação degradada da do poeta português (num dos casos, Alexei Bueno atribui a semelhança a um quase-plágio do autor brasileiro).
Mas o interesse em genealogias literárias, e particularmente nas relações entre Sá-Carneiro e seus contemporâneos ou antecessores brasileiros, não levou o crítico a discernir os surpreendentes pontos de contato com a tradição que vem de Sá Miranda e tem em Filinto Elísio seu mais notório representante antes do romantismo.
Bueno ignora, sobretudo, as afinidades de Sá-Carneiro com um grande representante brasileiro da tradição filintista, Sousândrade. Trata-se de afinidades pontuais, é verdade, mas nem por isso menos significativas: "Meões do nada, desaparecei-me" é um verso do poeta maranhense que parece, com meio século de antecipação, puro Sá-Carneiro (como já observaram Haroldo e Augusto de Campos em "Revisão de Sousândrade").
Mas Alexei Bueno tem por Sousândrade uma aversão tal que o levou a excluir o poeta da recente antologia da poesia romântica brasileira que organizou para a editora Nova Fronteira. O fato de que essa antologia ignora o autor do "Guesa" e contempla a mediocridade de um Bernardino Lopes dá bem uma idéia dos critérios do responsável por esta importante e bem-vinda edição.

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