São Paulo, quinta-feira, 22 de junho de 1995
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Antropologia

OTAVIO FRIAS FILHO

Muita gente pergunta, a propósito da profissão da primeira-dama, o que é, afinal, a antropologia. Como jornalismo é serviço, valeria a tentativa de responder em prol do esclarecimento de lobistas, políticos, empresários e demais pessoas interessadas no caminho das pedras do poder.
Ocorre que há 80 anos, idade aproximada desta simpática ciência, os antropólogos vêm se perguntando o que é, afinal de contas, a antropologia. Quase podemos dizer que a antropologia é a atividade que visa a responder o que é a antropologia.
Montaigne, o filósofo francês do século 16, foi talvez o primeiro antropólogo. Confiando no relato de um viajante, ele comenta o clima ``temperado e suave" da terra onde os nativos, os nossos conhecidos tupinambás, ``passam o dia a dançar".
Esse texto, curto e famoso, deu origem à ideologia do ``bom selvagem", à concepção de que os civilizados é que são bárbaros, enquanto os povos ditos primitivos vivem num paraíso de harmonia e felicidade. Toda a obra de Rousseau parece emergir daqueles poucos parágrafos.
Quem já visitou alguma taba ainda quase incólume sabe que as coisas não são bem assim. Um chinês, um marciano, qualquer pessoa dificilmente preferiria viver ali se pudesse morar numa favela. A natureza, ela sim, é selvagem e brutal, além de parcimoniosa nas suas dádivas.
Mas os índios tinham alma e portanto estavam, em tese, abrigados pelo mesmo direito natural dos europeus. À medida que eles eram dizimados pelo colonizador e que a religião, já no século passado, entrava em crise, desaparecia a base sobre a qual se apoiava a idéia de uma natureza humana.
Os relatos dos primeiros etnógrafos, cientistas mais ou menos amadores que exploraram a África e a Oceania, causaram grande confusão. A moral, os costumes etc. não apenas variavam imensamente, mas chegavam a extremos bizarros e desencontrados, verdadeiras absurdidades sem relação entre si, sem lógica e sem propósito.
Sir James Frazer, um dos primeiros antropólogos no sentido atual do termo, escreveu sobre o trabalho que lhe tomou a vida inteira: ``Uma crônica trágica dos erros do homem, loucuras, esforços vãos, tempo perdido, esperanças frustradas". Apesar do pessimismo, a antropologia prosseguiu na busca de seu Eldorado, alguma unidade que permitisse distinguir a natureza humana sob o caos das suas manifestações isoladas.
Lévi-Strauss chegou perto disso. Por meio do método estruturalista, que consiste em abandonar os conteúdos para vislumbrar relações, no caso, relações de pares opostos, ele estabeleceu vínculos, antes invisíveis, entre mitos e hábitos os mais remotos, seja no tempo, no espaço ou no seu conteúdo.
Com o tempo, o estruturalismo virou uma espécie de fé; muitos apontaram as limitações da sua pretensão universalizante. Não tenho idéia do que aconteceu com a antropologia depois disso, mas provavelmente ela continua perplexa diante da diversidade humana e à procura da unidade capaz de definir o que é, afinal, a antropologia.
Do ponto de vista prático, ela serve para nos tornar mais céticos, como Montaigne. Com sua obsessão pelo que é fixo, não-histórico, ela nos faz mais conservadores e amigos de tradições. Por essas e por outras, nunca se ouviu Ruth Cardoso dizer ``esqueçam o que eu escrevi".

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