São Paulo, segunda-feira, 26 de junho de 1995
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Obras menores

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Noite dessas, em jantar com amigos, conversávamos sobre vários assuntos e surgiu a questão: num grande autor como Skakespeare, Goethe ou Dostoievsky haveria a chamada ``obra menor"? Se medirmos a importância por uma régua, uma escala física, evidente que não se pode comparar ``Otelo" ou ``Hamlet" com, digamos, ``As Alegres Comadres".
Acontece que o verso mais banal, o pensamento menos original, no fundo, pertencem ao conjunto de um autor maior, daí, tanto a banalidade como a falta de originalidade devem ser compreendidas como o tecido conjuntivo que sustenta aquilo que Ezra Pound chamou de ``punti luminosi".
O critério serve para autores de obras numerosas, em qualquer gênero: Chaplin, Beethoven, Leonardo -para citar alguns. Outro dia, num trabalho de edição do Novo Testamento, encontrei a anotação de um erudito sobre as epístolas de São Paulo. Seguindo a tradição, ele despejava importância nas duas epístolas básicas, a Romanos e Hebreus. Mas, chegava ao desprezo quando se referia às cartas a Tito e a Timóteo.
Bolas, é impossível compreender o legado paulino sem as referências, às vezes pessoais e prosaicas, contidas nas cartas ditas menores. O conjunto é que conta e forma aquilo que se convencionou chamar de raiz judaico-cristã do Ocidente.
Pulo de São Paulo para Machado de Assis, outro que se tornou exemplo do maior e menor. Maiores seriam suas obras da maturidade, Dom Casmurro, Braz Cubas, Quincas Borba. Menor seria praticamente o resto. Quem lê ``Helena" tem hoje o referencial de Capitu e Virgília. É como Garrincha ou Pelé, que passam 85 minutos correndo atrás da bola e, de repente, o raio ilumina o estádio e surge a jogada do gênio.
Paro por aqui. Citei Shakespeare, Goethe, Leonardo, Chaplin, São Paulo, Garrincha, Machado e Pelé. Pensando bem, é uma lástima ter parado: depois de amanhã volto a falar de Serra, Malan, Serjão, FHC e do neoliberalismo.

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