São Paulo, segunda-feira, 3 de julho de 1995
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Recepção de Bakhtin

LUIZ S. KRAUSZ

O Romance e a Voz - A Prosaica Dialógica de Mikhail Bakhtin
Irene A. Machado Imago, 347 págs. R$ 25,00

Toward A Philosophy of the Act
M. M. Bakhtin
Tradução: Vadim Liapunov
University of Texas Press, EUA

A obra ensaística e crítica de Mikhail Bakhtin, composta a partir da década de 20, produziu um impacto gigantesco nos estudos de teoria literária, quando passou a ser conhecida no Ocidente, a partir de meados da década de 70. Nos Estados Unidos, criou-se, já na década de 80, uma verdadeira escola bakhtiniana, que revolucionou as maneiras de se conhecer o romance e sua situação no contexto mais amplo da história da literatura e da cultura. Seus iluminadores estudos, também na área de filosofia da linguagem e estudos medievais, foram muito bem acolhidos pela intelectualidade americana, rapidamente adquirindo o status de obras de referência obrigatórias, na fértil zona de intersecção entre a filosofia, a linguística e a teoria literária.
No cenário intelectual brasileiro, Bakhtin também gerou (e continua a gerar) fortes ressonâncias. Seu estudo sobre a poética de Dostoiévski ganhou, em 1981, uma tradução para o português (Editora Forense-Universitária). Boris Schnaidermann publicou seus ``Ensaios sobre Dostoiévski e Bakhtin", em 1983, e foi um dos pioneiros na discussão das idéias deste genial teórico russo entre nós. Criou-se, também aqui, um considerável acervo crítico em torno das idéias deste mestre, e vários de seus trabalhos foram traduzidos durante a década de 80. Em particular, suas idéias acerca da linguagem e carnavalização -derivadas de seus estudos sobre Rabelais e o picaresco no universo medieval- encontraram no Brasil um vasto universo de aplicação, em várias modalidades do estudo da cultura.
O atraso da chegada de Bakhtin ao Ocidente deve-se, sobretudo, às dificuldades por ele encontradas em sua terra natal, onde seus estudos sobre a língua foram considerados perigosos para a ideologia oficial. Ele e seus discípulos sofreram perseguições por parte do governo de Stalin; muitas de suas obras foram censuradas, outras estão perdidas para sempre.
``O Romance e a Voz", estudo de Irene Machado, volta-se para um só aspecto do legado multifacetado de Bakhtin: suas idéias acerca do surgimento do romance e de suas especificidades enquanto gênero. Este trabalho, portanto, aproxima-se mais de obras como ``Questões de Literatura e de Estética" (publicada pela Hucitec em 1993) e de seu estudo sobre a poética de Dostoiévski (Forense, 1981) do que, por exemplo, de ``Marxismo e Filosofia da Linguagem" ou ``A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento" (ambos publicados pela Hucitec).
Para Bakhtin, ao contrário de tantos outros críticos do século 20, o romance não é um gênero em declínio. Antes, é uma espécie de gênero imortal, indestrutível, que se nutre e se renova a partir de si mesmo, já que é dotado da capacidade inesgotável de parodiar, imitar a si mesmo e às infinitas falas e línguas que constituem o universo da palavra no mundo, sempre emprestando-lhes novos significados e provocando, em seus leitores, novos efeitos, impressões, evocações e associações de idéias. Esta sua capacidade de transformar-se sempre, a partir de si mesmo, à maneira das metamorfoses de Proteu, é a garantia da sobrevivência de um gênero que, para Bakhtin, surgiu há cerca de 2 mil anos, com as sátiras menipéias do mundo helenístico, e segue com viço sempre renovado.
A maior parte do trabalho de Irene Machado é uma apresentação das idéias cardinais de Bakhtin acerca do romance e da prosa (donde o subtítulo prosaica -por oposição a poética- do romance) enquanto gênero artístico, situando-se no contexto mais amplo das culturas letradas. A autora exemplifica estas idéias com casos muitas vezes escolhidos da literatura de língua portuguesa.
Se este aspecto de seu trabalho é útil como introdução, também é superado pela leitura dos originais agora existentes em português (notadamente ``Questões de Literatura e de Estética", já que os ensaios de Bakhtin são, de um modo geral, dotados de grande clareza, dispensando explicações ou comentários).
Por outro lado, ``O Romance e a Voz" situa o surgimento da teoria bakhtiniana do romance no cenário mais amplo dos estudos literários e linguísticos na União Soviética, mostrando como se relaciona com as idéias de Jakobson, Eikhenbaum, Propp e outros teóricos, e oferece-nos também uma visão panorâmica das repercussões de Bakhtin entre alguns teóricos deste final de século, como por exemplo Northrop Frye, além de apresentar uma parcela da crítica mais consistente que vem sendo feita às suas teorias.
Por exemplo, citando Kate Hamburger, Machado mostra-nos a falibilidade da noção de que a poesia épica se distingue do romance por situar-se num pretérito perfeito, inacessível. Este postulado de Bakhtin é colocado em xeque pelo argumento de que a récita épica efetivamente reatualiza, isto é, torna presentes através do ritual de sua apresentação, os acontecimentos que narra -idéia mais do que provada pelos estudos de literatura oral que, desde Parry e Lord, ocupam lugar de destaque em toda a teoria contemporânea acerca da épica.
Situar o surgimento das idéias de Bakhtin num contexto mais amplo, relativizando-as e permitindo uma melhor compreensão dos seus limites, é o que maior utilidade empresta a esta obra e talvez devesse ocupar uma parcela mais significativa da mesma, já que complementaria os originais do autor já traduzidos para o português. De qualquer maneira, a autora consegue, num só volume, apresentar as idéias de Bakhtin sobre o romance com toda a reverência da qual ele é merecedor, localizando-o e garantindo o seu destaque dentre os mais luminosos pensadores do século 20, apontando também alguns de seus limites. Limites que ficam totalmente ofuscados pelo fascínio irresistível dos originais de Bakhtin, que, lidos inadvertidamente, geram a forte ilusão de serem textos canônicos, irrepreensíveis e absolutos.
Um dos textos mais densos de Bakhtin só recentemente foi publicado no Ocidente, em tradução para o inglês. Trata-se de ``Towards a Philosophy of the Act" (University of Texas Press, 1993), que foi publicado em 1987 pela ``Revista de Ciências Sociais" da ex-URSS. Este ensaio tem uma história curiosa. Durante os muitos anos em que Bakhtin foi perseguido pelo regime stalinista, sendo obrigado a mudar de residência inúmeras vezes, ocultou, num porão na cidade de Saransk, uma série de manuscritos de sua juventude. Em 1972, revelou a alguns discípulos a existência desses manuscritos, mas os mesmos, quando encontrados, estavam muito danificados, e parcialmente devorados por ratos. ``Sobre a Filosofia do Ato" foi encontrado em estado deplorável e só graças a um meticuloso trabalho de edição realizado por S. G. Bokharov uma parte do manuscrito pôde ser publicada.
Trata-se de um dos primeiros textos de Bakhtin, escrito entre 1919 e 1921, quando a Rússia vivia a grande efervescência cultural decorrente da revolução de outubro e as multidões debatiam questões como Deus, liberdade e justiça. Discute o ato, sua representação e sua concepção, à luz da filosofia moral, bem como a diferença moral entre os atos físicos e os mentais, e as suas consequências, mostrando forte influência kantiana, mas tentando pensar além da formulação kantiana do imperativo ético. Aborda também alguns temas que ocuparão a melhor parte da obra mais tardia de Bakhtin: a relação entre o mundo experimentando em ações e o mundo representado no discurso, a cultura e a experiência e as limitações inerentes à linguagem.
Interessa, sobretudo, aos estudiosos das relações entre a filosofia e a teoria literária, a ética e a estética. Mas como se trata de uma obra fragmentária, da qual mesmo os trechos que chegaram até nós foram escritos às pressas, não tendo sido revisados pelo autor, é um trabalho que poderá ser lido com proveito apenas pelos conhecedores da filosofia moral e da obra de Bakhtin como um todo.

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