São Paulo, segunda-feira, 3 de julho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Índios na escola

BRUNA FRANCHETTO

A Temática Indígena na Escola - Novos Subsídios para Professores de 1º e 2º graus
Organizadores: Aracy Lopes da Silva e Luís Donisete Benzi Grupioni Edição do MEC/Mari/Unesco, 576 págs. R$ 18,00

O livro consegue realizar com sucesso um dos objetivos básicos de seus idealizadores e organizadores: abrir, ou até escancarar, portas e janelas do universo da produção acadêmica de conhecimentos sobre os índios no Brasil para uma vital enxurrada de informações que deve (esperamos) invadir outro universo, o da educação escolar. Ensaia-se, com isso, também, um canal de comunicação promissor entre a universidade e o ensino básico, ponto crucial em qualquer pauta de renovação do papel da universidade na formação de uma sociedade de cidadãos.
No caso específico, no Brasil, temos, de um lado, um enriquecimento crescente -em qualidade e quantidade- dos saberes acadêmicos voltados para o estudo dos diversos aspectos da questão indígena, de restrita circulação a uma rede de especialistas, e, do outro, uma população de pseudocidadãos: os alunos de uma escola, sobretudo a pública, declaradamente falida em sua tarefa de formação, e os índios, cada vez mais engajados numa luta consciente para o reconhecimento de sua existência física e cultural. Sinal de que algo se move na pasmaceira nacional, essa publicação vem à luz graças ao engajamento inédito de uma instituição governamental (o Ministério da Educação e Cultura) -motivada pela atuação de uma assessoria qualificada, desde que novas regras do jogo oficial definiram a chamada ``educação indígena" como sendo de responsabilidade desse ministério-, em parceria com universidades, organizações não-governamentais e internacionais, como a Unesco, empenhada, talvez, em acender uma faísca da tão propalada ``revolução educacional".
Fruto de um empreendimento de fôlego, mobilizando o que hoje há de melhor na antropologia brasileira, em termos de resultados de pesquisas e de um verdadeiro elenco de autores, este trabalho reúne desde nomes consagrados nacional e internacionalmente até contribuições de dissertações e teses de pós-graduandos. O público destinatário não é apenas o dos professores e estudantes de cursos primários e colegiais, mas pode ser muito mais que isso, a sociedade em geral, caldeirão de preconceitos racistas sempre em gestação e terreno sempre fertilizado do senso comum monitorado. Digo sociedade e nela incluo os políticos e os chamados técnicos de governo, dos quais geralmente dependem a ``invenção" e a implementação de programas indigenistas; a eles, em particular, recomendo a leitura atenta desse livro, com um convite: ``Todos de volta para a escola!".
A concepção do livro, tal como refletida em sua organização, revela sobretudo inteligência pela capacidade de inovar esquemas consagrados e já inócuos na apresentação e articulação das facetas da temática indígena. Destacamos alguns pontos. Em primeiro lugar, embora cada parte e cada capítulo possam ser lidos independentemente uns dos outros, inova-se em termos da sequência. O ponto de partida tradicional -informações sobre sociedades, línguas e culturas indígenas- não constitui o pontapé inicial. Antes disso, há dois momentos e espaços importantes que ligam um presente e um passado em grande parte mistificados, quando não ignorados.
O presente diz respeito à veiculação, pela primeira vez para um público maior, e em geral sem acesso às publicações especializadas, de informações que compõem um panorama atualizado da problemática indígena hoje: biodiversidade e sociodiversidade; um levantamento exaustivo de grupos e de censos demográficos, que permite uma visão correta de quantos e quais são os índios no Brasil; a história recente das trajetórias e peripécias das organizações indígenas, resultados de movimentos políticos locais e nacionais que convergem na luta de reivindicação de direitos formais e sempre negados sobre terras e territórios, sobre a manutenção criativa de identidades étnicas, linguísticas e culturais, sobre a autonomia das formas de expressão política organizada.
Nesse contexto, chamo a atenção para dois aspectos. Há um tema importante que atravessa vários ensaios e é explicitado como cerne de uma discussão crítica nas contribuições de João Pacheco de Oliveira, Carlos Alberto Ricardo, Sílvio Coelho dos Santos, Manuela Carneiro da Cunha. Trata-se de responder circunstanciadamente a um já velho refrão, que passou da retórica das forças políticas antiindígenas à retórica do senso comum: ``Tem muita terra para pouco índio". Os autores esfarelam de modo honesto e sem recorrer a uma retórica reativa ineficaz as supostas razões e as argumentações que continuam fundamentando uma política indigenista do Estado, que legitima os interesses de forças políticas locais e de poderosos lóbis militares e empresariais (madeireiras, mineradoras, ruralistas, entre outros).
Em suma, ``muita terra para pouco índio" é mais uma das balelas dos que estão com a faca na mão, prontos para fatiar o bolo das terras habitadas por povos indígenas. Por outro lado, se o livro é dedicado, em princípio, aos usuários da escola não-indígena, o artigo de Márcio Ferreira da Silva e Marta Maria Azevedo nos fala das contradições e vicissitudes de uma escola, instituição branca, para usuários índios. O público pode saber de coisas surpreendentes, como a polêmica em torno do ensino bilíngue (modelo moderno incorporado até pela legislação indigenista brasileira em vigor como uma das conquistas da cidadania indígena) ou como a pauta de reivindicações das associações de professores indígenas, que incluem sempre o seguinte ponto: ``Nas escolas de não-índios será corretamente tratada e veiculada a história e cultura dos povos indígenas brasileiros, a fim de acabar com os preconceitos e o racismo" (ponto que é a razão de ser de ``A Temática Indígena na Escola").
O olhar que penetra o presente se volta então para o passado, lembrando antes de tudo, que o senso comum dos livros didáticos e dos conteúdos repassados no processo escolar de ensino-aprendizagem trabalham, com raras exceções, com a figura de um índio genérico, imaginário, relíquia de outros tempos, o do ``homem primitivo" e o dos primórdios da formação da nação. Histórias outras podem ser contadas quando se efetua o diálogo entre a antropologia (inclusive no âmbito de uma antropologia biológica renovada), a arqueologia e a história, revelando a riqueza da interdisciplinaridade. Novos olhares sobre o passado e sobre o presente projetam um futuro provavelmente desconcertante para muitos: a realidade indígena de hoje é riquíssima, repleta de dinâmicas políticas e culturais que decretam a extinção não dos índios, em franca recuperação demográfica, mas, sim, do entusiasmo assimilacionista.
Para corroer eficazmente preconceitos e racismo, os diversos autores falam em uníssono e entronam a perspectiva e os instrumentos de observação e interpretação da antropologia, a ciência do homem que harmoniza universalidade e diversidade por excelência. São lições para um progressivo entendimento da alteridade, dos ``outros" possíveis e existentes, um entendimento sereno que leva o leitor para longe de si e para dentro de si, para o estranhamento diante do familiar, que é a cura mais saudável para os males dos ``centrismos" inconscientes. Propõe-se, assim, ensaiar uma educação democrática e crítica. Saber e pensar a respeito dos índios constituem o ensaio aqui e agora no Brasil, país abençoado pela pluralidade étnica, linguística e cultural.
O livro não se reduz a uma coletânea de artigos costurados por um tema e subtemas comuns e por uma mesma linguagem, respeitadas as diferenças de estilo e na maior ou menor digeribilidade por parte de um público de leigos. Há boxes que o leitor pode consultar para aprofundar problemas específicos, como legislação, os eco-conhecimentos, os projetos de ONGs, flashes etnográficos sobre determinados povos. Há ensaios fotográficos que atualizam as imagens de uma memória visual que se reduz às instantâneas fictícias de índios emblemáticos (como são os do Alto Xingu ou os Kayapó de Raoni). Há, enfim, roteiros didáticos que guiam o professor para usos e possíveis explorações do material e dos temas, além de bibliografias e referências sistematizadas para quem queira ir além... quem sabe a curiosidade excitada de um antropólogo ``in fieri".

Texto Anterior: A primazia do social
Próximo Texto: Um clássico!
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.