São Paulo, segunda-feira, 3 de julho de 1995
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A gramática da reflexão

BENTO PRADO JR.

Apresentação do Mundo - Considerações sobre o Pensamento de Ludwig Wittgenstein
José Arthur Giannotti

Companhia das Letras, 311 págs.
R$ 23,00

"Ao filosofar, devemos mergulhar no Caos primitivo e lá sentirmo-nos bem" (Wittgenstein).

"Quase diria que é necessário, em toda Poesia, que o Caos transpareça através do véu regular da Ordem (den regelmãssigen Flor der Ordnung)"(Novalis)

Devo dizer, de início, que não concordo com a avaliação severa e altaneira, talvez arrogante, que Paulo Francis (esse grande especialista, entre mil outros assuntos, da obra de Wittgenstein) fez do livro de José Arthur Giannotti, ensinando-nos finalmente, com a finura de um urso autodidata, que, se para o primeiro Wittgenstein toda "oração" (sic) é sistematicamente figurativa, para o segundo, tudo é função do uso (waaal!). É bem verdade que um dos aspectos do livro de Giannotti é uma tentativa, muito aparelhada aliás, de afinar nossa compreensão da mudança acima descrita a golpes de machado. Operação tanto mais significativa quanto a discriminação realmente fina que propõe não esquece, antes revela, a continuidade da obra do filósofo vienense, com o progressivo (e fantástico, acrescenta Giannotti) alargamento do conceito de lógica e da prática da análise como método único da filosofia.
Mas não nos enganemos: este livro não é principalmente, embora também o seja, um livro sobre Wittgenstein. O autor não é historiador da filosofia e nos adverte, desde o início, que seu texto só pode ser compreendido à luz de sua obra anterior -uma "neue Darstellung" (nova "apresentação", num vocabulário que lhe é caro) de sua "ontologia do social" ou de suas reflexões e seus trabalhos sobre os conceitos de trabalho e de reflexão. Tudo isso é certo (e, sobretudo, é a prova de uma notável fidelidade a uma intuição antiga), mas talvez devêssemos dizer -sem necessariamente nos contradizermos, ao contrário do sugerido pelo autor- que é o novo livro que lança luz reveladora sobre os anteriores. Aqui, como sempre, a cronologia não fornece o melhor fio condutor para a compreensão. Não dizia Hegel que a verdade é o resultado?
Nova apresentação, portanto, de uma antiga mania teórica -mais antiga mesmo do que imagina Giannotti. De fato, na rememoração de seu itinerário, não se lembra de um parágrafo do prefácio de sua tese de doutoramento (publicada há 35 anos e escrita há 37). Lá (na página 12), militava contra o "matematicismo" e o "positivismo" da epistemologia francesa em que se formara e sua cegueira para a diversidade dos modos pelos quais o "universo do discurso" postula, prefigura ou delimita as diferentes "regiões do Ser". Desde então, inimizade pela ontologia formal que tudo homogeneíza sob o conceito de "objeto qualquer". Tratava-se já, naquela data longínqua, de apontar para o grande pecado teórico que consiste em supor que "o ser, em particular o ser social, possui a impassibilidade que lhe permite ser iluminado deste ou daquele modo sem que se altere sua própria perdurabilidade e o caráter de objetividade com que se forma".
A expressão algo estranha de "perdurabilidade" prefigura outras que logo a substituiriam, como "autoprodutividade" ou "autoprodução", sempre referidas ao ser social e, mais recentemente, o caráter reflexionante dos jogos de linguagem e de toda a prática. Qual a obsessão metafísica de Giannotti que se exprime assim , sistematicamente, em todos os seus escritos? Seu livro atual decantou esse nó teórico, fazendo-o transparecer no contraste entre a filosofia de Wittgenstein e toda a tradição do pensamento ocidental: Aristóteles, Kant, Hegel, Marx, Husserl, Heidegger e Merleau-Ponty. Aliás, sublinhemos o grande interesse do contraponto operado por Giannotti entre Wittgenstein, de um lado, e , de outro, o par Heidegger/Merleau-Ponty, mostrando a proximidade e a distância entre noções tão próximas como as de "Lebenswelt" (mundo da vida) e "Lebensform" (forma de vida), evitando as tentações opostas de identificar ou opor de maneira absoluta esses dois estilos de filosofia. Mas qual é esse nó? Digamos que é aquele que liga, ao longo da história, e de diferentes maneiras, a forma do juízo à geografia categorial do mundo. Ou a ponte que liga a lógica formal à lógica transcendental e, assim, aos diferentes tipos de objetividade. Ou, ainda, no caso privilegiado de Wittgenstein, a operação do ver como, que permite a transformação do sinal em símbolo e a passagem da lógica à ontologia.
Não fica claro (pelo menos a uma primeira leitura, necessariamente superficial, quando se trata de um livro complexo como este, com todo o seu cipoal de conceitos) se, nessa passagem da lógica à ontologia, Giannotti leva em consideração a distinção quineana entre a questão "que diz uma teoria?" e a questão "que há?", ou a distinção entre o universo do discurso e o universo real. A essa questão retornaremos adiante; tentemos, por enquanto, nuançar um pouco, pelo menos, esta apresentação perfunctória da "Apresentação do Mundo". Para fazê-lo, é preciso sublinhar o lugar privilegiado que Kant ocupa entre os demais membros da Bella Scuola que Giannotti constitui retrospectivamente. "A Gramática da Reflexão" foi o título que escolhi para esta resenha, mas poderia perfeitamente ser "Uma Nova Crítica da Faculdade de Julgar". É, aliás, significativo que Giannotti tenha acreditado dever acrescentar a seu livro, como apêndice, um texto sobre "A Forma do Juízo e a Apresentação do Caso em Kant", e que funciona como uma espécie de contraponto a seu próprio livro. Como se esse apêndice mostrasse os limites da genial iniciativa crítica, ou aquilo de que ela carece (uma teoria lógica dos nomes, da quantificação etc.), a ser corrigida com os instrumentos fornecidos por Wittgenstein. Em todo caso, não é apenas nos textos consagrados a Kant que comparecem, no texto de Giannotti, o vocabulário e o sistema conceptual da filosofia crítica. É assim que, mesmo tentando manter à distância o estilo do "psicologismo transcendental" de Kant, Giannotti não hesita em retomar para si, se entendi bem, a idéia da necessidade da "conjuminação" das atividades do entendimento, da imaginação e da sensibilidade, mesmo fora do campo da razão teórica.
Não é raro que os comentadores apontem para a continuidade das empresas de Kant e Wittgenstein. Tanto é assim que quase todos apontam para o paralelismo existente entre a "Crítica da Razão Pura" e o "Tractatus". Tanto num caso como no outro, uma tarefa de delimitação da razão: do que é determinável mediante conceitos ou do que é dizível, exprimível ou pensável. Também um apriorismo transcendental está presente em ambos os casos: categorias e formas da intuição, para um, forma lógica para outro. Mas o que interessa, e é novo, na leitura de Giannotti, é o reencontro do estilo transcendental, lá onde normalmente se vêem apenas pragmatismo, culturalismo e relativismo -na noção de jogo de linguagem.
Como nasce essa noção? É com a ruína da teoria da universalidade da forma lógica da proposição, que arrasta consigo os atomismos lógico e ontológico, que tal noção vem à tona. Em seu lugar, surge uma concepção holista da linguagem, que descreve de maneira nova as relações entre as palavras e as coisas, ou entre as regras e os casos a que se aplicam. A idéia de jogo de linguagem traria consigo algo como uma instância mediadora entre regra e caso (o núcleo da problemática transcendental), mas, sobretudo, daria a essa instância um caráter não psicológico. Qual é o limite da filosofia kantiana? O coração mesmo da filosofia transcendental: "Kant passa a operar num terreno que a análise gramatical abole: se todo juízo, em suma, toda regra, é antes de tudo uma síntese de representações, esta regra não mantém uma relação interna com seu caso" (Giannotti, "Apresentação", pág. 25). Aqui, creio, estamos perto do coração selvagem desta nova crítica -se a entendi bem, pelo menos na sua intenção mais geral. São dois, aparentemente, os traços mais salientes desta nova interpretação dos jogos de linguagem: o uso da idéia de meio de apresentação e suas consequências, ou seja, a definição do jogo de linguagem como prática reflexionante. Tudo isso já estava presente na obra de nosso autor, mesmo antes de seu retorno a Wittgenstein (não esqueçamos que, já em 1968, oferecia a primeira tradução de Wittgenstein em português, precedida de longo e sólido prefácio -onde, é verdade, denunciava o "tournant" desastrosamente pragmatista e irracionalista dos escritos posteriores de Wittgenstein). Naquele tempo, era a medida do valor (primeiro capítulo do "Capital"), interpretada à luz da idéia de reflexão da Lógica da Essência de Hegel, que estava na raiz da teoria giannottiana do esquematismo (desde sempre antipsicologista), ou dos "esquemas operacionais". Agora, é a idéia de modo de apresentação (um objeto "arrancado ao mundo" que passa a servir de metro, padrão ou critério para outros objetos) que ocupa o lugar central. Sempre contra os restos da "filosofia da consciência", como a famosa "camada do logos" husserliana ou o "Gedanke" (pensamento) do "Tractatus", incapazes de objetivar a reflexão. Arriscando uma fórmula: para Giannotti/Wittgenstein, não há representação sem apresentação (o que fica mais bonito em alemão: "Keine Vorstellung ohne Darstellung"). Sem a "Darstellung", em suas múltiplas modalidades, em sua dimensão prática, a lógica não se ancora no mundo, e a regra não pode vir, retrospectivamente, a recobrir os seus casos.
Mas, se assim é, é o espírito da "Crítica da Faculdade de Julgar" (devidamente gramaticalizada) que devora completamente o espírito da "Crítica da Razão Pura", como as "Investigações Filosóficas", de fato, devoram o "Tractatus". Aqui, é claro, seria necessário que me demorasse nos efeitos paradoxais da idéia de reflexão (a busca da regra, essencialmente futura, a partir do caso), que subverte tanto a concepção vulgar da imbricação entre Razão e Tempo, quanto a concepção sofisticada do Tempo Lógico ou da Ordem das Razões. Efeitos que sempre seduziram Giannotti, desde Hegel ("A verdade é o resultado") ou a idéia marxiana da História Contemporânea (ou retrospectiva, expressa na frase famosa: "A anatomia do homem explica a anatomia do macaco"), até Merleau-Ponty e sua idéia de sedimentação. Essa idéia de uma dobra do tempo e da lógica, de uma espécie de determinação retrospectiva, que brilha também, entre mil outras, num belo aforismo de "Sobre a Certeza", onde Wittgenstein explica que os alicerces são sustentados ou fudamentados pelo edifício que sobre eles se ergue.
Mas, para fazê-lo, teria de ir longe demais, sem conhecer antecipadamente o caminho de volta. E não poderia deixar de guardar espaço para algumas observações arriscadas (já que não ignoro que Giannotti conhece mil vezes melhor do que eu, não só a lógica em geral, como também a obra de Wittgenstein em particular), mas insopitáveis, para quem foi tomado pelo entusiasmo da leitura e não pode esquecer-se de quase quarenta anos de diálogo, sem tentar relançá-lo. Observações que concernem, não ao livro do Giannotti, mas à sua interpretação de Wittgenstein (ou alguns pontos dela). Giannotti reivindica, direito de todo filósofo, poder utilizar Wittgenstein como um "moyen du bord", entre outros, no livre movimento de sua atividade especulativa. Mas não posso impedir-me de endereçar-lhe as seguintes perguntas:
Será que esta versão duramente "ontológica" da renovação wittgensteiniana do estilo transcendental, pelo viés da gramática, não entra em choque com o espírito mesmo do filósofo instrumentalizado? Voltando a Quine, acima referido, será que "Apresentação do Mundo" não representa uma vingança da barba de Platão contra a navalha de Ockham? Digamos, ao menos, que "Es klingt nicht wie Wittgenstein", ou não soa ao estilo do filósofo, que via sua tarefa como a de desteoretizar, desontologizar a filosofia. Com efeito, a expressão ontologia regional, mesmo desconectada de sua origem husserliana, ou tem alcance teórico e efeitos epistemológicos, ou não sei o que poderia significar. Pode-se compreender que as "Investigações Filosóficas", dissolvendo falsos problemas, denunciem mal-entendidos de regiões da matemática e da psicologia como um todo: mais difícil é entender tais textos como programa teórico-epistemológico para toda ciência social futura que queira apresentar-se como ciência. Não desprezava, solenemente, Wittgenstein, não só a epistemologia, mas a própria ciência (sobretudo na sua conexão moderna com a técnica -esse "lixo imundo", como a caracteriza, logo depois da Segunda Guerra, nas suas "Vermichtete Bemerkungen"), como também a idéia de Progresso, impregnado certamente pelo "pathos" apocalíptico de Spengler? Será que Giannotti se despediu, para sempre, do essencialismo husserliano de sua juventude? Será que disse, mesmo, à "Wesen", "tchau" ?
Entre as mil proezas de Giannotti, no seu grande livro, devemos ser-lhe gratos por ter dissolvido, de um só golpe, dois grandes equívocos contemporâneos sobre Wittgenstein: tanto a leitura relativista das "Investigações", quanto a conversacional-comunicativa, que vê, no giro linguístico da filosofia, a ocasião do renascimento do belo universalismo da filosofia das Luzes. Mas, ao insistir na idéia de racionalidade como expressiva da universalidade da humanidade, Giannotti parece levar água para o moinho da pragmática transcendental dos herdeiros de Frankfurt, que critica com tanta razão. Tal parece ser o caso do comentário que faz dos parágrafos de 608 a 613 de "Sobre a Certeza". O texto crucial é o último: "Disse que combateria o outro o adepto da mitologia contra a Física, nota de BPJ -mas não deveria dar-lhe razões? Certamente, mas até onde vão elas? No fim das razões, está a persuasão (Pense no que ocorre quando os missionários convertem os nativos)". Lembro, para dar o contexto, que a expressão "Vernunftiger Mensch", recorrente nesse horizonte, significa pessoa razoável, e não homem racional. Será que, aqui, a oposição entre relativismo e universalismo não recebe o mesmo destino que o "Tractatus" reservara à oposição entre solipsismo e realismo? Ou que Pascal, antes dele, reservara à oposição entre pirronismo e dogmatismo?
A atividade da filosofia não culmina em Teoria -mas algo da cumplicidade antiga entre ver e pensar é preservado no novo estilo de pensamento, como se nota no uso obsessivo de expressões como "šbersehen" e "šbersichtlichkeit", literalmente "visão ou ver panorâmicos", mas também "visão em transparência", "perspicuidade". Já que se derreteram os icebergs da Dialética e da Ontologia, podemos ver tudo, sem teoria, não há mistério, nada está escondido.
Se nada está escondido, talvez possamos dizer que o lugar antes ocupado pelo Místico, no "Tractatus" (acessível por alguma forma de transcendência silenciosa), passou a ser ocupado depois pelo Caos primitivo (a história natural do homem, acessível por uma também silenciosa transdescendência?). Com a Poesia, talvez, a Filosofia pudesse ser definida como a apresentação do Caos (do Sublime?), visto em transparência, através do "regelmãssigen Flor der Ordnung".

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