São Paulo, terça-feira, 4 de julho de 1995
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Divine Brown conta tudo sobre Grant

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Eu não reconheci ele não. Eu estava parada ali na Sunset Strip e estava usando o meu paletó de oncinha artificial, porque pele real eu não uso. Isso não é correto politicamente. Não sou uma piranha comum. Sou uma afro-americana que exerce o direito natural de vender o sexo a terceiros.
Eu sou a Divine Brown Inc. Eu sou a empresa de mim mesmo, eu vendo ilusões. Procuram-se prostitutas pelas mesmas razões por que se vai ao cinema: em busca de ilusão! Eu vendo ilusões; sou exatamente igual à Warner ou à Columbia Pictures; eu sou a produtora de meus próprios filmes. Só que eu faço filmes realistas, insuportáveis para Hollywood.
Como eu dizia, não reconhecei quando ele, o Hugh Grant, parou e eu entrei no carro dele. Ele estava meio de porre, suava muito, e eu senti que ele precisava de ajuda.
``O que está errado com você, meu bom e velho urso?" (as frases em inglês estão traduzidas ao pé da letra) ``Como é o teu nome, bebê?", arfou ele, com uma garrafa de gim na mão. Bonito, ele. Achei ele ``cute" e perguntei se ele queira a coisa inteira (``the whole thing") ou apenas um ``serviço de sopro" (``blow job"). Depois na polícia escreveram ``felatio".
Ele começou a chorar e a dizer que não aguentava mais: ``I can't take it any more!", dizia. ``O quê, quer crack?" Não. Ele disse que era inglês e que, como todo inglês, tinha vida dupla, que ele não aguentava a caretice americana e que ele usava até lingerie debaixo da roupa e me mostrou e disse que precisava se banhar na ignomínia. A ``ignomínia" era eu.
Vi que ele queria mais que sexo. Ele me disse que tinha uma mulher branca linda e que ele tinha tudo que queria. Eu perguntei: ``Então por que você precisa de mim?" ``Eu preciso de você porque sou branco e bonzinho, preciso me sentir mais real!", berrou.
E aí eu fui contando para ele como era minha vida no gueto, e ele foi ficando feliz, e eu fui virando um filme para ele (ele pediu minha vida real) e eu obedeci e até fingi que ele era um namorado meu que foi morto pelos tiras, um crioulo legal, Jockstrap Joe, a polícia acabou com ele naquele último ``riot", e eu tive de reconhecer ele no necrotério, com aquele papelzinho no dedo do pé, todo ensanguentado, e eu fiquei de bico calado porque ninguém viu os policiais batendo.
E ele (Hugh) fingia que era o meu crioulo, deitado no banco do carro, e ele me fez chorar no colo dele, não foi difícil porque isso foi verdade, e aí eu continuei inventando tragédias de vida de crioulo mesmo, e ele já queria ir para a minha cama no gueto, e eu falei que não, que era uma miséria e que meus filhinhos iam acordar, e ele foi ficando alegre, dizendo que eu era a ``deep truth" (verdade profunda), fazendo um trocadilho com aquele filme de sacanagem ``Deep Throat" ah ah...
E eu fui até achando ele mais bonito, e aí foi que ele disse que era o Hugh Grant, ator e coisa e tal... e eu reconheci ele! Claro, eu tinha visto aquele filme! Mas na hora eu pensei logo foi no ``Pretty Woman", com a Julia Roberts e o Richard Gere, em que o galã se apaixona pela piranha e casa com ela! ``God", eu tinha amado aquele filme, não teve uma piranha em Sunset que não chorasse.
Todas estamos até hoje esperando um galã, e o Hugh Grant cai no meu colo chorando, e aí eu fui ficando doida, sonhadora, santo Deus, eu era a boa puta que ele ia levar para o Hotel Beverly Wilshire, que ia ter banho de loja em Rodeo Drive! Eu já me via andando pelo hall de mármore e fui ficando amarradona no cara mesmo.
Ele ia pedindo para eu contar as desgraças do gueto, e eu contava, mas quando eu falava, digamos, do maldito botequim do Kim ``coreano" eu pensava era no restaurante do Wilshire e no champanhe com caviar. Eu perguntava do quarto dele, e ele me contava da bica de ouro, do tapete de veludo, e eu contava que no terremoto fiquei morando um ano debaixo do viaduto em San Fernando Valley.
E ele foi bebendo daquela garrafinha de gim e sacudia o carro todo e dizia que era o terremoto e me obrigou a fingir que eu era a enfermeira negra que ia cuidar de suas feridas no terremoto, e eu pensando que eu era a Julia Roberts, e ele foi ficando mais excitado e me obrigou a ir cantando um rap chamado ``Fuck You Buster", e eu cantava o rap fazendo festa nele com as mãos, e ele ia me cantando uma música do Frank Sinatra e me chamando de "my love.
Eu perguntava se ele ia me amar sempre, ele dizia que ia casar comigo e me chamava de "Black Cinderella, e eu chamava ele de negão da pizza, ele gritava que queria entregar pizza de patins no Harlem e ele então pediu para eu ensinar a ele o rap do "Fuck You Buster" e pediu também para eu fazer o "serviço de sopro" nele, e eu falei: "Olha, meu bom e velho amigo, ou bem eu faço o "serviço de sopro" (blow job) ou bem eu canto o rap; é impossível fazer as duas coisas ao mesmo tempo!... aha...aha...
Ele riu e cantou o rap enquanto eu fazia meu trabalho pensando naquele vestido vermelho que a Julia usa na festa, e ele gritava: "Eu sou democrático, eu sou negro, eu sou sujo, eu não gosto de brancas azedas, e aquela Elizabeth Hurley é uma chata do cacete! (palavras dele) e disse que ela era frígida, que ele ia romper com ela e casar comigo e me chamava de flor da montanha, e eu dizia ``yes yes yes!"
E ele balançava o carro pacas e dizia que era o terremoto, o "big one", e eu chorava e trabalhava, e ele me chamava de Julia, e eu (desculpe minhas lágrimas, moço), mas eu estava tão feliz...
Foi quando a polícia chegou, e aqueles tiras foram logo me empurrando, e aí o senhor já sabe o que aconteceu. Para mim acabou ali. Eu tinha acordado de um sonho. Eu era a Julia Roberts e de repente eu tava entrando na porrada ali no Sunset Strip, e ele, Hugh Grant, fingiu que não era ele, o policial reconheceu, e ele disse: "Não, eu não sou eu!" ("I am not me!"), ele disse isso, e o policial me empurrando, eu fui ficando puta e gritei: "Ele é o Hugh sim, ele é o meu galã!"
E aí ele fingiu que não me conhecia e disse que eu tinha invadido o carro dele e falou: "Nunca vi essa mulher!" Como nunca viu? E quem te ensinou esse rap? E comecei a cantar o "Fuck You Buster", e o "cop" me deu outra porrada e me jogou no camburão.
Dentro do camburão ele foi chorando e dizendo que estava arrependido e que a carreira dele ia acabar, e eu fui consolando ele, fiquei com pena do bofe ("hunk") e, enquanto ele chorava no meu colo e pedia para eu dizer que tinha invadido o carro dele, eu pensava que nunca ia poder ser a Julia Roberts, porque eu não era afro-americana nada, eu era uma tremenda duma crioula e, se eu entrasse no Wilshire, era só para lavar banheiros.
E aí eu comecei a chorar alto, e nós dois chorávamos, enquanto a sirene do carro levava a gente, e depois o que aconteceu na polícia já é história, o senhor viu, ele se arrependeu em público, enquanto eu lembrava dele imitando o meu negão morto, e eu então vi que não adiantava eu me arrepender, tanto fazia eu me arrepender ou não. Ele não, ele tinha futuro.
Mas, então, estranho, eu fui ficando contente, orgulhosa de mim e, quando começaram a me fotografar na delegacia, eu fiz minha melhor cara e pensei: "Vou vender caro minha versão do fato, a versão do gueto!" E eu fui ficando alegre, porque eu vi que eu tenho uma função nessa porra toda, eu sou a verdadeira Julia Roberts!
Vejam quanta coisa eu fiz muito além de um mero michê: eu desmistifiquei a hipocrisia da América, eu sou necessária porque eles precisam da verdade que Hollywood esconde. Assim como o Hugh veio em busca da verdade, o público também precisa.
Eu sou o filme realista que Hollywood não tem coragem de fazer. A história da minha vida acorda a América. Eu saquei que eu sou melhor do que ele, inclusive como cinema. Eu sou um filme de Spike Lee, e ele não passa de um filmezinho do Norman Jewinson. Eu sou a grande Divine Brown, a nova estrela do gueto. Quem dá mais? Vocês querem a verdade? Paguem caro! Eu sempre estarei aqui, nessa esquina da Sunset. O Hugh gamou. Um dia ele voltará para a sua querida Julia Roberts negra!...

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