São Paulo, quarta-feira, 5 de julho de 1995
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Don DeLillo confronta as duas Américas

DANIEL PIZA
DA REPORTAGEM LOCAL

Numa de suas sacadas geniais, o crítico H.L. Mencken escreveu: ``Todo grande escritor é contra seu país". Se essa fosse uma condição suficiente, o americano Don DeLillo -autor do romance ``Libra", que acaba de chegar às livrarias brasileiras, com bíblicos sete anos de atraso- poderia ganhar o título de grande escritor.
O assunto está à altura. ``Libra" trata do assassinato do presidente John Fitzgerald Kennedy, em 1963, em Dallas (Texas, EUA). Poucos outros temas poderiam fornecer tanta munição para um escritor disparar sua metralhadora no coração da América.
DeLillo é, como poucos, um crítico arguto e agudo da sociedade americana e, também como poucos, capaz de plasmar sua sátira na forma -jamais na fórmula- de um refinado thriller.
Mas, calma, ``Libra" não é um romance de tese, não é como esses livros e filmes sobre JFK que chafurdam a arte no argumento. Não quer provar ou contestar nada. Paradoxalmente, tal reserva só faz ampliar seu poder de fogo.
Seu alvo central se chama Lee Harvey Oswald, o autor (atenção: é um fato comprovado) do tiro que esmigalhou o cérebro do presidente. O que interessa notar, sobretudo: DeLillo está concentrado em criar um personagem. Não uma trama, um dialeto ou um pastiche.
DeLillo nos dá um personagem consistente, uma narrativa ligeira e um cenário político-social e cultural minucioso, à maneira do romance tradicional. Mas nem por isso faz um texto linear e deixa de lançar mão de paródia, alusão, chiste e outros recursos.
Está a meio caminho entre o realismo viril de um Norman Mailer (que acaba de lançar nos EUA um catatau sobre Lee Harvey Oswald) e o pós-modernismo de um Thomas Pynchon (autor de ``V").
Em outras palavras, ``Libra" se alimenta tanto de experiência direta quanto de indireta. Como a vida cotidiana. Recorra-se ao clichê: ele ``pulsates with life" (pulsa com vida), tem drama e ironia.
A inteligência do livro se apóia na caracterização de Lee não como um psicopata obscuro ou um inocente útil, mas como um sujeito medíocre e ressentido, nascido na pobreza do Bronx e leitor de teorias comunistas ``maldigeridas".
DeLillo, porém, consegue criar empatia; consegue mostrar ao leitor as razões (emocionais e não) que levaram Lee a vislumbrar no atentado a JFK uma possibilidade, como diz outro personagem, David Ferrie, ``não de entrar na história, mas de sair dela".
O pesadelo da história é vivido por Lee nas salas de cinema ou diante da TV. Kennedy, rico, poderoso, charmoso, cercado por mulheres e aclamações públicas, é mais um desses mitos na tela mental de Lee, nanico, pobre, feio, cercado por negros e hispânicos e aulas de russo e tiro.
Nessa equação, claro, DeLillo confronta as duas Américas, a que está sugerida naquela fala que os filmes tanto repetem, ``Este é um país livre", e a que é temida quando ocorrem explosões terroristas.
O estilo, apropriadamente, é o de uma câmera nervosa, buscando significados em detalhes, cheio de cortes e metonímias.
Quando está na Cidade do México, por exemplo, Lee passa um domingo no cinema; já na segunda-feira, vai à embaixada cubana e liga para um diplomata soviético.
É com esses contrastes que o livro se desenrola. Daí o título. Segundo DeLillo, algumas pessoas do signo de libra, simbolizado pela balança, são potenciais desequilibrados -como Lee, sacudido entre idealismos (Hollywood e comunismo) inconciliáveis.
Há certa facilidade nessa equação, mas ela rendeu um livro vigoroso, com inteligência e humor a cada página e persuasivo na crítica ao ilusionismo americano.
Não há quem não compreenda a frustração de Lee Harvey Oswald e sua vontade de ``pertencer à história". Isso, sim, faz de Don DeLillo um grande escritor.

Livro: Libra
Autor: Don DeLillo
Tradução: Marcos Santarrita
Páginas: 432
Preço: R$ 35

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