São Paulo, quarta-feira, 5 de julho de 1995
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`Ganga Bruta' mostra homem `integral'

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

VÍDEO/LANÇAMENTOS
Estranho destino, o de "Ganga Bruta". Levou mais de dois anos para ser filmado. Quando ficou pronto, o som, gravado no sistema "movie-tone (em que a sincronização era feita por meio de discos), já era uma antiguidade.
Assim, não é de espantar que as platéias tenham torcido o nariz. Nem que Henrique Pongetti tenha chamado Humberto Mauro (1897-1983), desdenhosamente, de "Freud de Cascadura".
A história diz respeito a Marcos (Durval Bellini), um engenheiro que, na noite de núpcias, mata a mulher (Lu Marival). Absolvido, vai para o interior, onde cuida da construção de uma fábrica.
Lá, conhece Sonia (Déa Selva), adolescente, cheia de manhas e, no mais, noiva de Murilo (Decio Murillo).
A crítica de Henrique Pongetti era de uma crueldade absurda, cujo objetivo na verdade era atingir o produtor Adhemar Gonzaga. Mas num ponto ele tinha razão: o argumento de "Ganga Bruta" cabe em uma caixa de fósforos.
Isso não desqualifica o filme. Ver "Ganga Bruta a partir de sua história é mais ou menos a mesma coisa que ver uma natureza morta a partir das frutas que a compõem: simplesmente não tem fundamento.
A idéia do "Freud de Cascadura", ao contrário, faz sentido apesar de sua maldade exemplar. O primeiro ponto de interesse do filme -o mais evidente- é a óbvia conotação erótica.
Basta olhar a vegetação, que carrega o esplendor da sexualidade feminina. Ou as imagens da fábrica em construção, que investem nas linhas verticais de maneira despudorada, a significar o masculino (em ereção).
Esses elementos tão freudianos servem de quadro, na verdade, para as reinações de personagens lançados no que há de mais primitivo dos seres.
É estranho como Mauro, um cineasta delicado, conseguia transitar entre a construção sofisticada de seus personagens e esse primitivismo radical: pula-se do reino da cultura para o da natureza sem qualquer cerimônia.
"Ganga Bruta" é um filme do Brasil. O atraso tecnológico é sua marca indelével. É um filme em que os personagens querem falar, em que a a própria linguagem já pede o sonoro, mas aí entra o primitivo sistema "movie-tone".
Ao mesmo tempo, existe uma explosão de talento tão evidente que compensa essas dificuldades. O homem que Mauro vê neste filme é algo que se poderia chamar de "integral": o melhor e o pior dele, o sublime e o deletério, o afetivo e o sádico, como se todo o tempo, nesses seres, a vida e a morte travassem um duelo que, na tela, eclode no esplendor da violência.

Vídeo: Ganga Bruta
Direção: Humberto Mauro (Brasil, 1931/1932)
Elenco: Durval Bellini, Déa Selva, Lu Marival, Decio Murillo
Produção: Adhemar Gonzaga
Lançamento: Sagres (tel. 021/253-4782)

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