São Paulo, sexta-feira, 7 de julho de 1995
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A flexibilização do cinismo

ANTONIO NETO

O governo Fernando Henrique e parcela ponderável dos meios de comunicação vêm tentando recentemente se utilizar da heróica greve dos petroleiros como pretexto para operar profundas transformações nos direitos dos trabalhadores e na própria organização dos sindicatos. A recente medida provisória dos salários é apenas a ponta de um gigantesco iceberg.
Longe de pretender melhorar as condições de vida e trabalho da população, os ideólogos tupiniquins da ``modernização" desejam ``flexibilizar" -que em português claro significa ``quebrar"- uma série de direitos conquistados ao longo de várias décadas pelos trabalhadores. A eliminação dos reajustes automáticos dos salários, da aposentadoria por tempo de serviço, dos encargos sociais pagos pela empresa, da contribuição sindical e da unicidade sindical são algumas das propostas que, segundo eles, diminuiria o chamado ``custo Brasil", liberaria as negociações trabalhistas das ``amarras do Estado" e atrairia ao país uma série de investimentos estrangeiros.
O professor de economia da USP José Pastore tem pretendido, nos últimos tempos, se transformar no principal ideólogo brasileiro dessas teses. Em seu livro ``Flexibilização dos mercados de trabalho e contratação coletiva", ele advoga que ``o excesso de legislação no Brasil conspira contra o espaço da negociação".
Pastore raciocina que, num mundo onde a competição é extrema e a velocidade de deslocamento dos capitais é enorme, impõe-se a ``flexibilidade de contratação e remuneração". Para ele, na Constituição de 88, ``grande parte da legislação trabalhista, ao invés de diminuir, tornou-se ainda mais detalhada (...) dificultando a adaptação do sistema de relações de trabalho às novas condições de competição e inovação que o Brasil enfrenta".
Como panacéia universal e cura para todos os males, Pastore propõe um contrato coletivo que, pelo que se depreende do texto, passaria por cima da CLT e da própria Constituição, gerando ``acordos por empresa" de maneira direta entre patrões e empregados.
É fato que as inovações observadas na produção, como a automação e a perda relativa do peso do trabalho humano, tendam a impor novas relações entre capital e trabalho. O desemprego estrutural, que chega a cerca de 20% da população economicamente ativa nos países da Europa, e a acirrada competição internacional -em que as grandes corporações adquirem mais poder do que as próprias nações- devem levar à criação de mecanismos visando maior proteção à força de trabalho, e não a total eliminação de seus mecanismos de defesa.
A extinção de vários direitos acabará por gerar uma contradição alarmante. Enquanto o desenvolvimento técnico atingirá níveis nunca imaginados, veremos a recriação de um mundo, na esfera do trabalho, semelhante ao das primeiras décadas da Revolução Industrial, em que inexistia a limitação da jornada de trabalho, férias, e o trabalho infantil era a norma.
Claro que, em se falando de Brasil, essas características já dão a tônica em determinados ramos industriais, como os da vidraçaria e de calçados e na agricultura. Isso sem contar a existência de trabalho escravo em várias regiões.
Em nosso país, onde a mentalidade escravocrata ainda persiste, falar em eliminação de direitos -ou de ``privilégios", como setores do empresariado denominam as poucas concessões feitas às parcelas mais combativas dos trabalhadores- é coisa que beira o cinismo. Se a CLT fosse aplicada em sua totalidade no país, teríamos uma verdadeira revolução social.
Para aprovar na reforma constitucional esta volta ao passado, o empresariado e o governo precisam antes eliminar todos os mecanismos de defesa dos trabalhadores. Precisam quebrar os sindicatos. Essa quebra é vendida aos incautos com as palavras doces de ``liberdade e pluralidade sindical" e ``fim da contribuição sindical".
A ``liberdade sindical" que professam é o fim da unicidade que impede a existência de mais de um sindicato por categoria na mesma base territorial, advogando em seu lugar a criação de sindicatos por empresa. Como lembra o Diap, o atual ministro José Serra apresentou proposta, durante a fracassada revisão constitucional de 94, sentenciando que ``a lei disporá sobre os critérios de reconhecimento pelo empregador ou por sua entidade sindical, das entidades sindicais de trabalhadores, para efeito de negociação coletiva".
Ou seja, além de pulverizarem os sindicatos, os patrões passariam a escolher com qual deles estabeleceriam negociações válidas para toda uma categoria. O fim da contribuição sindical, por sua vez, eliminaria quase que por completo os sindicatos menores.
Seria o caso, por exemplo, do sindicalismo dos trabalhadores rurais. O fato é que não existe em lugar algum do mundo sindicato que se mantenha com base em contribuições voluntárias. As entidades e os trabalhadores necessitam de dinheiro para fazer frente ao imenso poder econômico contra o qual se batem constantemente. Necessitam de um sistema de comunicações ágil e poderoso e de infra-estrutura material suficiente para enfrentar esta luta.
Os exemplos práticos desta situação, preconizada pelos repetidores brasileiros das exóticas teses neoliberais, são dados por anúncios publicados recentemente por revistas empresariais americanas, como ``Apparel Industry Magazine", ``Global Production" e o ``Bobbin". Uma publicidade da Bangladesh Exporting Zones Authority, por exemplo, exalta as vantagens de se investir naquele país.
Entre elas está o fato de que ``Bangladesh oferece a mais barata e produtiva força de trabalho. Leis proíbem a formação de sindicatos e as greves são ilegais". Anúncio da província mexicana de Yucatan exalta as vantagens locais como ``custos trabalhistas abaixo de US$ 1,00 por hora de trabalho, incluindo benefícios". O Montecristi Corp anuncia a ZPE da República Dominicana, a ``Hong Kong do Caribe", como extremamente vantajosa, onde ``os custos trabalhistas equivalem a 10% dos americanos" e ``sindicatos não existem".
Os exemplos são vários e não caberiam nestas linhas. Mas a impressão que fica é que este é o admirável mundo novo da ``flexibilização" e da ``modernização" preconizado pelos nossos originais neoliberais.

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