São Paulo, sábado, 8 de julho de 1995
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Prisão civil do depositário infiel

LUIZ FLÁVIO GOMES

1. A autorização constitucional (art. 5º, inc. LXVII) para a decretação da prisão civil do "depositário infiel" conflita flagrantemente com o direito internacional também em vigor no nosso país (vid. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, art. 11, e Convenção Americana sobre Direitos Humanos, art. 7º, nº 7). O direito internacional, no entanto, não revoga a Constituição; havendo violação de suas regras, o máximo que se pode fazer é denunciar o Brasil junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. A única prisão civil admitida é a do alimentante inadimplente, que é legítima, visto que, neste caso, sacrifica-se o bem jurídico liberdade individual para tutelar outros bens jurídicos muito relevantes como são a vida, a integridade física, saúde etc.
2. Com base na CF, a legislação "ordinária" brasileira contempla inúmeras hipóteses de prisão civil do depositário infiel (CPC, art. 904, Decreto-lei nº 911/69 -alienação fiduciária-, Lei nº 8.866/94 etc.). Hoje, essas prisões, valem ou não valem? A resposta só pode ser esta: as criadas antes de novembro de 1992 foram revogadas; já as instituídas depois dessa data são válidas (com a observação que faremos logo abaixo).
3. Em 09 de novembro de 1992 entrou em vigor no nosso país a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (v. nosso "Direito de Apelar em Liberdade", RT, SP, 1994, p. 78 e ss.). No seu art. 7º, n. 7, como já foi dito, não foi contemplada nenhuma possibilidade de prisão de "depositário infiel". Os tratados e convenções, segundo a jurisprudência do STF (v. o RE 80.004, verdadeiro "leading case" -RTJ 83, p. 809 e ss.-) e a CF (arts. 5º, parágrafo 2º, 102, III, "b", 105, III, "a"), logo que devidamente aprovados, ratificados, promulgados e publicados, possuem valor de lei federal ordinária (fala-se aqui no sistema paritário, de origem anglo-saxônica). De acordo com esse sistema, vigora o clássico "lex posterior derogat priori, isto é, eventuais conflitos entre o direito internacional posterior e o direito interno do país são resolvidos em favor da regra "posterior": os tratados e convenções, devidamente formalizados, revogam o direito interno anterior, assim como "perdem eficácia" quando conflitam com o direito interno posterior (vid. o livro acima citado, p. 74).
4. Observadas as regras que acabam de ser relembradas, outra conclusão não se apresenta possível: as prisões civis de depositários infiéis criadas antes de novembro de 1992 foram "revogadas", isto é, foram banidas do nosso ordenamento jurídico (e se alguma decisão judicial contrariar a Convenção ou negar-lhe vigência, cabe "recurso especial" - CF, art. 105, III, "a-; já as prisões civis da mesma natureza instituídas após aquela data são válidas, com a observação de que pode qualquer interessado "denunciar" o Brasil junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos por ter violado o direito internacional, praticando ato totalmente incompatível com a dignidade humana (principalmente quando vergonhosamente estabeleceu a prisão civil -no caso, uma intolerável, arbitrária e desproporcional intromissão na liberdade humana- para a cobrança da dívida contraída junto à Fazenda Pública - Lei 8.866/94).

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