São Paulo, segunda-feira, 10 de julho de 1995
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Vivendo com a morte

DA "SEVENTEEN"

Sined Corwin conta como é difícil e dolorosa a convivência com sua mãe, Mary, portadora do vírus da Aids
US$ 120. Foi quanto Sined Corwin, 14, levou ao ``Aids Dance-a-Tohn", um evento nos EUA, que recolhe fundos para portadores de HIV -o vírus da Aids.
Ela foi ao show de Queen Latifah, Rosie Perez, Village People e Robin S. Havia teens, pais com filhos e gente mais velha. ``Estava muuuuuito legal", diz Sined.
Foi só por um momento que ela foi pega de chofre pelo verdadeiro motivo de estar ali. ``Queen Latifah disse: `Todos os soropositivos levantem as mãos'. Acho que 80% das pessoas levantaram. Ela falava dos portadores do HIV. Falava de minha mãe", diz Sined.
Mary Corwin, mãe de Sined, tem Aids há seis anos. Sined sabe que quase todo o tempo que têm juntas se esgota. Elas discutem sobre quem vai tomar conta de Sined, quando Mary morrer.
Apesar de não estar contaminada pelo vírus, a doença faz parte de sua vida. Há um ano, o padrasto da garota morreu por causa da doença. Seu pai também. Desde os 4 anos, Sined já perdeu 50 amigos e parentes adultos com a doença.
``Na sexta série, eu disse a uma garota que minha mãe tinha Aids. Bem, claro que a escola inteira sabia do assunto no minuto seguinte. Achei que minha vida tinha acabado e que nunca mais teria amigos. Engano. Todos foram ótimos e sempre me deram o maior apoio."
Falar sobre Aids na casa dos Corwin é uma missão. Elas apareceram no vídeo ``Absolutely Positive" (absolutamente positivo). Dão palestras em escolas e fizeram um CD-ROM sobre a doença.
Mary está convencida de que a única maneira de Sined manter sua saúde mental é não esconder nada dela. Nem o fato de que ``a Aids não mata. Ela apodrece você", segundo Mary.
Sined sabe que muitos adolescentes têm o mesmo problema, nem sempre com o mesmo preparo. Ela encontrou um garoto que nunca tinha contado que a mãe era aidética. ``Ele não sabia o que fazer. Eu conto a todos. Tudo bem."
Claro que não está tudo bem. Aos 14 anos, Sined perdeu quase todos os adultos de quem gostava. O que não a preparou para perder a pessoa mais importante de sua vida: sua mãe.
``Vou à terapia toda a semana. Para falar sobre os meus sentimentos. Para colocá-los para fora. Ainda tenho muito o que desabafar", completa pensativa.
Sined se mudou com a mãe para San Francisco, quando os pais se separaram. Lá, Mary encontrou o amor de sua vida, Billy Corwin, com quem se casou. Billy não estava doente, mas sabia que Mary estava infectada.
À medida que ficava mais adulta, Sined entendia e recebia mais informações sobre a doença. ``Quando minha mãe ia para o hospital, eu dizia aos meus amigos onde ela estava. Não inventava mentiras ridículas, tipo ela está no Caribe ou em qualquer parte."
Só há três anos, quando Billy foi diagnosticado, Mary começou a pensar seriamente no futuro de Sined. Em 94, Billy morreu.
"Não quero que Sined tenha medo de sofrer. Ela já perdeu muito. Quando eu morrer, ela vai ficar revoltada. Não quero gente pedindo a ela que esqueça antes de estar pronta para isso", diz Mary.
A questão da guarda é muito difícil. Depois de um Natal passado com tia Erin, irmã de Mary, em Nova York, a mãe perguntou à filha: ``Que tal ficar com sua tia?".
``No início, torci o nariz. Mas eu e minha tia nos entendemos muito bem. Ela me conhece e sabe quais são os desejos de minha mãe." Erin torceu o nariz também, mas concordou.
Os planos são para que Erin se torne a tutora legal de Sined, depois que Mary morrer.
Se isso acontecer antes do fim do colegial, Sined fica em San Francisco até acabar a escola. Se Mary conseguir assistir à formatura da filha ``discutimos o que quero fazer na faculdade", diz Sined.
O que Sined quer é que sua mãe continue desafiando o vírus. ``Minha morte estava prevista para a época em que Sined estava na sexta série. Estou tentando aguentar até o fim do colegial", diz Mary.
Mas nem mãe, nem filha se apegam à idéia de alguma cura milagrosa. Sined nunca fala ``se" minha mãe morrer. Ela diz ``quando" minha mãe morrer. Ela fica petrificada com a idéia de que sua mãe sofra. ``Minha maior preocupação é que ela sinta dor."
Ela não pode negar que a saúde de sua mãe piora. ``Fico brava com ela, às vezes. Na verdade, fico brava com a doença. Fazemos planos e não podemos segui-los."
Parece estranho, mas Sined e Mary estão passando um tempo muito bom juntas. Saem quando podem. Atualmente, têm visto mais TV e filmes em vídeo. Mas apesar do clima de amor e compreensão, a tristeza é óbvia.
Algumas vezes, Mary não pode fazer nada além de se deitar no sofá, enrolada em um cobertor. Ela se sente muito cansada. ``É muito deprimente não aguentar sair para ler em seu próprio jardim. Ou sentir uma dor de cabeça tão grande que o som do telefone faz você ter vontade de chorar."
Ela tenta não sobrecarregar Sined, mas a ``rainha da sopa em lata" -apelido da garota- quer e precisa tomar conta de sua mãe.
``É cansativo viver com uma pessoa que tem Aids. É duro. Ela dificilmente pede as coisas. Faço porque gosto muito. Como cozinhar ou arrumar a casa e lavar a louça. Sei que ela fica furiosa de não poder fazer", diz Sined.
E Sined o que faz? O mesmo que qualquer adolescente: começa uma vida independente dos pais.
Toda a manhã, ela acorda às 6h, pega o ônibus para a escola e se diverte com as amigas. Joga futebol e vôlei.
Sined não tem medo de pegar a doença quando transar. Ela ainda é virgem. Fala sobre sexo seguro e sabe a importância da camisinha.
Entretanto, ela fica mais reservada, quando o assunto é como sua mãe se infectou.
``Quando Sined era pequena, ela me perguntava porque eu não dizia a todos como contraí a Aids. Decidi mostrar a ela, em vez de explicar", diz Mary.
Mary tinha consulta com dois médicos. Levou a garota junto. O primeiro ficou perguntando como ela tinha se contaminado. ``Como se isso fosse mudar algo. Eu disse a ele que tinha usado drogas injetáveis. Ele se tornou brusco e apressado, querendo me colocar para fora. No segundo médico, eu disse que não tinha certeza se havia contraído a doença de meu marido ou pelo uso de drogas. Ele disse que não tinha importância."
Mary não se orgulha de ter usado drogas. ``Mas usei. E errei. Eu estava bem. Ninguém percebia. Parei por causa de Sined. Não queria que ela crescesse naquele ambiente. Eu me desintoxiquei seis meses antes de a doença ter sido diagnosticada."
Muito já aconteceu. As duas cresceram e aprenderam. O amor entre elas é incomparável. Mary fica triste porque não vai ver Sined crescer. Sined fica triste porque sua mãe vai estar morta em dois, talvez três anos.
Ambas estão se preparando para o que a Aids ainda lhes reserva: dores, infecções, talvez cegueira e -o que mais amedronta Mary- demência. É um jeito desgastante de viver e horrível de morrer.
Sined ainda não está preparada para a morte de sua mãe. Nunca estará. Quem está? ``Sei que vai doer muito. Eu nem sei o que vou sentir." Mas ela não tem medo de ser deixada desprotegida.
Sabe que depende dela fazer de sua vida algo de bom e feliz. E ela sempre vai agradecer sua mãe. Por ter mostrado como.

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