São Paulo, segunda-feira, 10 de julho de 1995
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Não é presente _é dever

JAMES LOUIS CAVALLARO

Há 31 anos instalou-se no Brasil a ditadura militar que sequestrou, torturou, desapareceu com 152 pessoas e matou, pelo menos, outras 217. Dez anos depois de seu término, nada se fez de concreto por elas. A discussão sobre este episódio negro da história brasileira está de volta, por força de pressões de organismos internacionais e de entidades nacionais, sempre apoiados por familiares dos mortos e desaparecidos, que insistem no direito de saber como morreram, quando, onde e por quem.
Fernando Henrique Cardoso parece manifestar agora um desejo de resolver esta questão. O Ministério da Justiça está na fase de elaboração de um projeto. Já era hora. Em março, mandamos um documento resumindo as piores violações dos direitos humanos no Brasil e as responsabilidades, a nosso ver, do novo governo nesta matéria. Entre outros pontos, destacamos a necessidade de se fazer justiça para os casos de mortos e desaparecidos políticos.
Nesse documento, enfatizamos que o governo deveria cumprir, no mínimo, três ações a respeito deste tema. A primeira é aceitar a responsabilidade que lhe cabe. Outra é investigar cada caso rigorosamente, e a terceira é cumprir o processo de indenização.
Em sua visita ao Brasil em abril, o secretário-geral da Anistia Internacional, Pierre Sané, encontrou-se com FHC e cobrou uma solução para os casos. Ouviu como resposta algo como uma dificuldade de remexer num passado complicado. Na volta para Londres, disse ter sido muito decepcionante seu encontro com o presidente brasileiro.
Diplomático, coisa que sabe bem ser, Fernando Henrique Cardoso disse que tudo não se passou de dificuldade de compreensão da língua. Também em abril aconteceu mais um episódio que deixou o presidente um tanto quanto envergonhado. Numa coletiva em Washington, Angela Oliveira Harkavy, irmã do desaparecido Pedro Alexandrino, militante do PC do B e sumido desde 1970, no Araguaia, perguntou-lhe quando iria resolver esse e tantos outros casos.
Eu estava lá. Vi a emoção de sua pergunta e o constrangimento do sociólogo auto-exilado no Chile. A gota d'água para que a questão ganhasse mais força ainda foi o artigo publicado na revista ``Veja", em maio, pelo escritor Marcelo Rubens Paiva, filho do deputado Rubens Paiva, desaparecido em 1971. Num texto cheio de indignação com o silêncio das autoridades brasileiras, Marcelo lembra a amizade entre seu pai e o então professor Fernando Henrique Cardoso.
Recorda, também, um texto escrito em 1981, quando o ainda suplente de senador Fernando Henrique Cardoso afirma: ``somos sobreviventes e temos uma responsabilidade -assegurar que nada disso se repita", ao se referir ao regime militar de 64. Marcelo afirma não estar seguro de que isso não voltará a ocorrer, já que o autor desse texto teme remexer o passado. Ao lado dessas pressões, há o trabalho que nunca parou das famílias das vítimas dos mortos e desaparecidos e de grupos como o Tortura Nunca Mais.
No âmbito internacional, a questão dos crimes cometidos pelo Estado em casos como evidentemente foram os sequestros, torturas e homicídios requer uma solução justa. E esta solução internacional não é coisa da vontade de uma ou outra autoridade. É dever do Estado e direito da vítima e seus familiares.
Uma preocupação grande dessas famílias, de organismos internacionais e nacionais é que o presidente Fernando Henrique Cardoso, ao resolver mandar o ministro da Justiça fazer um projeto para resolver esses casos, não transforme esse ato numa vitória política e faça uma maquiagem para a comunidade internacional.
É bom que fique claro que, ao resolver esses casos, o presidente não está dando um presente às famílias dos mortos e desaparecidos. E resolver implica esclarecer as circunstâncias das mortes, o reconhecimento, pelo Estado, da responsabilidade nessas mortes, a identificação dos culpados e o pagamento de uma indenização.
Tais pontos estão de acordo com a jurisprudência internacional nesta área. A Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos já decidiu dois casos contra a Argentina e o Uruguai, nos quais a legislação que limitava o dever do Estado nesta matéria foi desafiada como violadora da Convenção Americana.
A comissão, interpretando a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, determinou que a convenção -instrumento que o Brasil ratificou em setembro de 1992- requeria que casos de graves violações dos direitos humanos cometidos na chamada guerra suja da Argentina e durante a ditadura do Uruguai ``tinham que ser investigados seriamente com os meios a seu alcance a fim de identificar os responsáveis, puní-los e assegurar às vítimas as reparações adequadas".
Não vamos entrar na questão de que o Estado pode ou não perdoar os responsáveis após a identificação dos mesmos, conforme os deveres internacionais. O que fica claro é que, para cumprir esses deveres, o Estado brasileiro deve, pelo menos, investigar como, quando e por quem cada um dos mortos e desaparecidos políticos chegou a esta condição infeliz.
A Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados tem um projeto para a responsabilização do Estado somente nos casos de desaparecidos políticos e pagamento de uma indenização às vítimas, mas não prevê nem a investigação das circunstâncias das mortes e desaparecimentos nem a punição dos culpados.
Trata-se de um projeto realista. Mas, no que diz respeito às entidades internacionais de direitos humanos, como a Human Rights Watch/Americas, não basta. Não ficamos com o realismo. Ficamos, de acordo com o nosso mandato, com o direito internacional de proteção dos direitos humanos. Queremos que o Brasil cumpra seus deveres internacionais.
No exterior, FHC é cobrado por não cumprir com o dever internacional em matéria de direitos humanos. Ao pedir ao Ministério da Justiça para elaborar um projeto para solucionar o caso dos mortos e desaparecidos, ele não está dando um presente às vítimas. É um dever que está cumprindo.

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