São Paulo, quinta-feira, 13 de julho de 1995
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Patroas do mundo inteiro, uni-vos

BOLETIM DE OCORRÊNCIA

MOACYR SCLIAR

Companheiras patroas, estas linhas representam um desabafo, um apelo à comunhão de sentimentos, mas também -e por que não, hein, companheiras patroas, por que não?- um manifesto. Companheiras patroas, está na hora de termos o nosso manifesto, um documento que expresse os nossos direitos inalienáveis e sagrados. Somente quem, como eu, passou pelo mais duro transe capaz de atingir uma patroa, está em condições de, desfiando fibra por fibra o coração, escrever a plataforma da Internacional das Patroas.
Companheiras patroas, eu roubei. Não, não vou usar eufemismos, não vou recorrer a explicações. O fato é simples, simples e brutal: roubei cheques da minha empregada. Os de coração empedernido dirão: qual é, pô? Roubou, tem de se ferrar. Justiça em cima dela. E eu bradarei: um momento, senhores! Analisemos o fato, senhores! O que é que me levou a roubar, senhores? Hein? O que é que me levou a roubar, companheiras patroas? Vocês sabem.
Vocês sabem que as patroas não são mais aquelas. Vocês sabem que o nosso tempo passou, o tempo em que éramos tratadas com reverência, porque tínhamos poder e dinheiro. Hoje, não temos poder nem dinheiro; somos oprimidas e pobres. E quem nos oprime e nos empobrece, companheiras patroas? Hein?
Elas, companheiras patroas. As nossas empregadas. Hoje em dia dependemos tanto dessa elite (elite, sim; massa somos nós) que já não podemos fazer mais nada sem elas. Vivemos sob um regime de constante terror. O que são as nossas manhãs de segunda-feira, companheiras patroas? O que são, senão uma constante e torturante dúvida -ela virá ou não? Somos obrigadas a nos nutrir, companheiras patroas, de expectativas messiânicas. Somos obrigadas a crer firmemente na vinda delas, sob pena de nossa mais completa desestabilização emocional.
Mas, dirão os inconscientes (um grupo que talvez inclua algumas companheiras patroas -como classe ainda temos muito a aprender), a patroa ainda tem recursos.
Erro. Erro crasso. Nós tínhamos recursos. Sob a forma de CDBs, RDBs, commodities, dólares. Hoje, com a carência em que vive a classe média, não temos mais nada. Somos inadimplentes, companheiras patroas. Inadimplentes na butique, inadimplentes no cabeleireiro, inadimplentes -é-me penoso dizê-lo- com as domésticas. Mas por quê, companheiras patroas? Muito simples: porque elas exigem demais. Sabedoras de nossa ansiedade, de nossa angústia existencial, elas tiram proveito de nossa fraqueza. Foi o que aconteceu comigo, companheiras patroas. Sem dinheiro, tive de roubar cheques de minha empregada. E para que ia usar os cheques, companheiras patroas? Exatamente para isso, para pagar a minha empregada. Humilhação maior não pode existir.
Está na hora de dar o basta, companheiras patroas. Unamo-nos! Nada temos a perder, a não ser as nossas algemas e também alguns confortos extras, como limpeza da casa, lavagem de pratos etc. Mas eu, particularmente, estou disposta a marchar de cabeça erguida para o sacrifício, companheiras patroas. Se for preciso, eu lavo a louça. Se for preciso, eu varro o chão. Se for preciso, eu saio da vida para entrar na cozinha.

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