São Paulo, quinta-feira, 13 de julho de 1995
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Terreno baldio da desindexação

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Perguntaram certa vez a François Mitterrand qual era a principal qualidade de um político. A resposta, gelada, foi: ``o segredo é a indiferença".
Fernando Henrique Cardoso é um presidente em início de mandato, com uma carreira política pela frente. Não poderia, evidentemente, usar da mesma franqueza. Mas se fizéssemos com ele uma das entrevistas imaginárias de Nelson Rodrigues, num terreno baldio, à noite, com uma única e solitária cabra vadia como testemunha, e repetíssemos a pergunta feita a Mitterrand, será que a resposta seria muito diferente? Talvez não.
Pelo menos é o que sugere a medida provisória da desindexação, editada recentemente pelo seu governo. Não é difícil perceber que a desindexação, tal como proposta pelo Executivo federal, contém diversas assimetrias, contradições e determinações questionáveis, apenas duas das quais suspensas pela decisão de anteontem do presidente do Supremo Tribunal Federal. Basta examinar, com um mínimo de cuidado, alguns artigos da medida provisória.
O segundo artigo, por exemplo, permite cláusulas de correção monetária em contratos de prazo igual ou superior a um ano, sem fazer qualquer ressalva para os contratos de trabalho.
Já o artigo 13 anula para os contratos de trabalho o estabelecido no artigo 2, ao vetar na negociação coletiva e no dissídio coletivo, cláusulas de correção salarial vinculadas a índices de preços. A discriminação é clara, portanto: admite-se indexação para todos os contratos de um ano ou mais, mas não para os contratos salariais, mesmo que as partes envolvidas queiram concluir acordos nessa base!
Se é assim, como pode o governo referir-se, no artigo 10 da mesma medida provisória, à ``livre negociação coletiva" para os salários?
Tanto mais que o artigo 13, além de restringir a correção salarial de forma discriminatória, proíbe também a concessão, a título de produtividade, de aumento não amparado em indicadores ``objetivos". Além disso, o parágrafo único desse artigo obriga a dedução, na data-base, não das antecipações salariais, como é usual, mas também dos aumentos concedidos!
Estranhamente, esse mesmo artigo 13, embora faça referência a negociação e dissídios coletivos no seu ``caput", estabelece que os indicadores objetivos deveriam ser ``aferidos por empresa", determinação agora suspensa pelo presidente do Supremo.
Num país como o Brasil, historicamente marcado por um alto grau de concentração da renda, como aceitar que a desindexação possa ser conduzida dessa maneira? A medida provisória precisa ser substancialmente modificada pela ação do Congresso, da Justiça ou do próprio Executivo, dando sequência às decisões tomadas pelo presidente do Supremo anteontem.
Um próximo passo seria suprimir o resto do artigo 13, garantindo a liberdade de negociação salarial. Isso permitiria aplicar o disposto no artigo 2 às negociações de contratos de trabalho, equiparando-se aos demais contratos no que diz respeito à indexação.
Entretanto, nas condições da economia brasileira, uma negociação verdadeiramente livre e o tratamento equitativo dos contratos não são condições suficientes para assegurar um processo de desindexação socialmente justo. É preciso garantir alguma proteção aos salários mais baixos e aos setores menos organizados e com menor poder de barganha. Em outras palavras, a assimetria aceitável é aquela que discrimina a favor dos setores menos favorecidos.
Essa preocupação é reforçada pelas perspectivas macroeconômicas para o futuro imediato. A inflação brasileira deverá continuar alta por padrões internacionais por algum tempo. Nos próximos dois ou três meses, haverá inclusive uma tendência de aumento da taxa de inflação, que já começou a ser captada nos índices em junho.
O próprio governo admite que a inflação brasileira ainda demorará alguns anos para convergir para os níveis de países que não utilizam amplamente mecanismos oficiais de correção salarial.
No que diz respeito no nível de atividade, as perspectivas não são, como se sabe, muito animadoras. Haverá, certamente, retração do nível de emprego e consequente enfraquecimento do poder de barganha dos trabalhadores, especialmente dos menos organizados e de nível mais baixo de renda.
Nessas condições, não seria mais justo alongar o cronograma de desindexação para os salários mais baixos? Uma possibilidade seria garantir por mais um ano, pelo menos, cláusula de reposição automática da inflação passada, na data-base, para as faixas mais baixas de rendimento. Daqui a um ano, conforme o comportamento da inflação e da economia, se examinaria a possibilidade de aprofundar o processo de desindexação.

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